01/06/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 4. DIÁRIO DE UM DIA (fragmento 10) - Coimbra, segunda-feira, 21 de Março de 2011

Iremos juntos e ambos a comprar giletes frescas para a casa nova – e talos de alho-francês, manteiga, madalenas de molhar no chá à Proust, um tapete de anti-derrapagem para o polibã, algum vinho transmontano de áspera e madura condição, lápis em promoção quantidade-cêntimos, caras-de-bacalhau, uma capa amarelo-torrado para o sofá da sala-de-estar-e-finalmente-ser(mos), um sabão azul-e-branco, uma prenda para a Alda, um espremedor de citrinos, dois pares de atacadores para as sapatilhas dos nossos ociosos domingos enamorados, uma litografia de gladíolos e estrelícias, um corta-unhas niquelado sem ser dos chineses, a silhueta de um cavalo sonhado por ti na infância do teu Pai, uma embalagem de detergente de máquina para roupa clara (que a escura se nos acabou, finalmente), uma braçada de agrião, um queijo do Sul, um saco de sal, um frasco de café solúvel, uma decisão matrimonial insolúvel, um disco de música alemã como deve ser, spray para (ou contra) as moscas que assediam a carne exposta de tanto amor, uma noite com vocação de manhã, um papagaio vivo e roxo e coxo e intempestivo, uma lata de aguarrás para purificarmos os azulejos do painel que fixa comuns os nossos corações um do outro clonados, uma fotobiografia de Florentino Ariza e outra de Fermina Daza em volume uno-duplo, uma lata de sebo para as botas com que vou ao monte quando-não-estás-nem-voltas-tão-cedo-por-causa-do-teu-ex-marido-etc., uma lâmina de sílex para raspar as vilosidades-intersticiais-da-memória-dobrada-intestinais das minhas tantas ex-mulheres, uma pasta-medicinal-Couto para ver televisão com os dentes a preto-e-branco, qualquer loção alcalina prò-menino-e-prà-menina, um limão que a verd’amarelo substancie o mamilo e o coração, uma garrafa de bagaço para eu usar com as botas ensebadas de ir-ao-monte- quando-não-estás-nem-voltas-tão-cedo-por-causa-do-teu-ex-marido-etc., aquele disco do Frankie Miller chamado Full House (aquele da canção Be Good to Yourself), uma data de pombos e uma lata de lombos de cavala e outra de pêssegos-Steinbeck da Grande Depressão, uma outra garrafa de bagaço para quando eu precisar da exumação dos meus mortos pessoais sempre que estiver sozinho mesmo contigo dentro de mim, uma lata de dez cigarrilhas para não comprarmos cigarros, uma pagela do Padre Cruz para que as velas saibam arder de cor, um baralho de cartas para adivinhar o passado, sementes douradas para o papagaio, um gato-criança para brincar com as cascas das sementes no chão e com a inquietação do papagaio lá em cima, dois anéis de ouro-branco para uma aliança-de-ouro-antigo(a), uma sombra-chinesa-a-vermelh’ópio, um frasco de espargos muito brancos, um postal da Brazileira-do-Chiado-em-Pessoa, uma folha A3 em branco para eu deixar por escrito em branco a propósito do que vivi sem ti, um fotograma rapidíssimo de gardénias para a Virginia Woolf a caminho do rio com os bolsos cheios de pedras, a liquidez (a liquidação) definitiva dos olhos do cavalo (qualquer, todo o cavalo), os campos provinciais da Inglaterra que já não/nunca mais/haverá, um clarão da solidão norueguesa, o prato azul da minha infância (vermelho, o do Fernando; o amarelo, o do Jorge; verde, o do Rui), os nossos Pais no Limbo, uma escova branca para os meus dentes terminais na tua/nossa casa inicial, uma latita de anchovas anti-cardíaca, a impressão digital do teu olhar na minha alma, o sortiflorilégio inca com que sacrificaremos o passado lunar ao futuro mais heliocêntrico, uma lata redonda das grandes de cavalinhas, uma cartilagem de beluga para o papagaio mordiscar nos intervalos dos ataques do gato, um manual de primeiros-socorros para extremas-unções, uma quarta de papel de manteiga para apontamento do dominó dos reformados assócio-recreativos, amoniacal para os mosaicos higiénicos, uma luva rugosa para espalhamento do reino epidérmico-lipídico do duche, uma barra de chocolate fibroso, para mim uma coisa daquelas de cola-gengivo-protésico-dental, para ti uma assinatura de duas rosas vermelhas e diárias entregues em casa via portador motorizado (nossa-casa-nossas-rosas), um frango-do-campo, um tetrapak de vinho-branco-de-cozinha-que-em-tempos-mais-precários-até-a-champanhe-sabe, uma romã abridora de rubis ourive-relojoeiros, um cardápio de trevas primevas recontadas no intervalo dos coitos sorridos gota-a-gota, o pico do Evereste em dêvêdê sem legendas em brasilês, as costas rebrilhante-negro-lucilantes de uma carocha disfarçada de corvo rasteiro, outra garrafa de bagaço ainda para quando eu etc., uma frase dita à hora de pagar à senhora-caixa relativa a quando eu não era ainda este cão batido pela chuva – e o meu receio único de nos termos esquecido de alguma coisa: ou de alguém.
(Sabes tão bem quanto eu que o esquecimento não se compra: mas paga-se, Isabel.)

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Canzoada Assaltante