12/05/2011

Rosário de Isabel e Dinis - 28

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28. PICA COMIGO UMA CEBOLA

Leiria, quinta-feira, 5 de Maio de 2011

Pica comigo uma cebola, junta-te a mim, abre comigo uma lata de pescado, neste canto do mundo aonde a doença não chega nem entra. Falemos um pouco do sol que faz, do bom vinho que nos coube em sorte sobre a mesa de tampo de mármore. Conversemos sem pressa a propósito do que nos beneficia a pele e o olhar, de pessoas que amam com pudor pessoas como nós. Fervo para ti uma posta de bacalhau, falemos um pouco de instantes das nossas mães passadas, esmaguei já para ti o cheiroso coentro e o alho forte, deram-me azeite do melhor, a febre da água de cocção borbulha já em nosso recato. Sejamos portugueses devagar. Lá ao fundo mora a terminação, não porém dela é agora o momento. Se queres, faço uns ovos melhorados pelo presunto fino, tenho discos do Marceneiro e da Amália, à noite Led Zeppelin e Léo Ferré, não duvides. Gosto de alimentar aves públicas, por isso te convido com vida. Faço uma canja de galinha verdadeira, a viuvinha minha vizinha cria-as com o catolicismo todo, são do melhor as vísceras e as enxúndias. Sê o raio de sol través a minha frase mais sozinha. Frige-se um pouco de pão, o paio é perfumado como um torso de mulher-capa-de-revista, anda. Um par de vermutes pode (claro que pode!) adoçar-nos a cardiologia, entrar-nos a remos o barco do dia. Eu vi o rio um dia, fala-me das tuas águas, das tuas pontes. Se te trataram mal, um talo de alface te trincarei com o vinagre da memória. Sabes, o alude dos corações resvala pedidos e arquitecturas finais. Um carapau escalado é barra de chocolate em ermida, recordo ter sonhado contigo em instâncias azuis, seriam verdes? Agora, saio daqui – e não falei contigo: nem te vi.

*

O ar e a luz do dia tornam-se água colorida que pensa: os olhos das pessoas. Estou atento a tal combustão. Revoo pelas ruas o meu dia de muitos dias e todos os anos. Num banco de praça, vendo as pombas, os velhos, as mulheres de outros homens, comovido como sempre ante a desarmante qualidade amante da vida. Ando por aqui ao ar e à luz, raramente converso. Acontece-me sonhar com florestas feitas de frases, as sombras são segundos-sentidos, acordo por vezes com a morte de um amigo na boca, levanto-me, vou beber água, não sei em que cidade estou nem que horas são – ou foram. Mulheres nomeadas a partir de flores e homens de árvores e crianças de monossílabos: Rosa, Margarida, Oliveira, Pinheiro, Nim, Sui.

3 comentários:

Anónimo disse...

Comovente esta melancolia amarga e doce.Quem é você que assim escreve dorido e belo?

Anónimo disse...

E ainda lhe revelo algo mais :quando era criança Daniel Boone e David Crocket eram os meus heróis da Revista "Cavaleiro Andante".Por isso gosto também do seu nome Daniel,seja ou não fictício
Rosário de Laura e António

Continuo a pedir condidencialidade

Daniel Abrunheiro disse...

O Daniel Boone! Foi minha alcunha (breve) na infância, por causa da TV. Obrigado pela visita e pelas palavras tão gentis.

Canzoada Assaltante