02/06/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (3 e 4)


Fotografia: © Sandra Bernardo
Tapéus, Soure
Domingo, 17 de Maio de 2009
(clicar na imagem)



3

28 de Maio de 2009

Esta luz é um salmo imponderável.
O verde arbóreo, sobre o cerúleo azul, apetece ser respirado. Está calor. Uma brisa refrigera o que pode – e quanto e quando pode, consola.
Estive considerando a palavra água. Quando gelo, é substância de moléculas estreitadas, oxigénio e hidrogénio enrijecidos, restringidos, mais íntimos um do outro. Quando, porém, suposta em rio, é tempo: ao mesmo tempo, passagem e permanência. Considerei isto para lograr perceber minimamente o poderio poético daquilo que nos volve homens e mulheres e gente: o salmo, a língua: mas agora, pela língua, o salmo é ponderável.

Conta-me ela que um casal toxi anda pela cidade recolhendo beatas para fumar onde logra encontrá-las. Diz-me ela que a rapariga não é velha, mas que o consumo a mostra acabada. Operam pela zona do mercado, pedem moedas, tentam ser arrumadores em lugares com parquímetro municipal, andam aí e por aí.



4

29 de Maio de 2009

Como então dizia, permanência e passagem, rio e luz.
Também o Adolfo Casais Monteiro (o de “A Palavra Essencial”, Editorial Verbo, Lisboa, 1972) às voltas com a, digamos, Dimensão-Poesia da realidade; as voltas neo-realismo versus (ou versos) surrealismo (nacionais) afloradas pelo Joaquim Manuel Magalhães de “Os Dois Crepúsculos” (Regra do Jogo, 1981); o gigantismo idiomático de António Vieira; Rodrigues Lobo afogado no Tejo em 1622, entre Santarém e Lisboa; as aves encalmadas de Sá de Miranda; o Vitorino Nemésio de “Conhecimento de Poesia” (Editorial Verbo, Lisboa, 1970); e Régio e Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca em o ano 1927 inicial de Presença; e António Nobre e Raul Brandão trazidos por Guilherme de Castilho:
estes nomes na manhã solar de sexta-feira, 29.

Vi raparigas e mulheres acaloradas no finiMaio, Junho às portas da cidade e do mundo.
Viçosas, as raparigas;
com blusas jardineiras, as casadas do campo que acodem à antiga vila a tratar das suas coisinhas responsáveis;
os pés de umas e de outras abertos em calçado ligeiro;
os óculos à moda das moças;
as cabeleiras lacadas das matrimoniadas;
e a ausência dos homens.

De onde me situei para usufruto da terminação da manhã, lobrigo um carro vermelho de pintura lascada no flanco traseiro direito;
um hom’zito de cintura de ganga subida à pança, camisa de quadraditos verdes, sapatos baratos e maus e feios e castanhos;
dois cães maravilhosos: ruços, vadios, livres, veteranos, maravilhosos;
andorinhas, pardais e pombas;
uma mulher pendurada de um saco dos supermercados Ulmar;
um pedaço de céu entre dois prédios;
uma moldura de mata a oriente;
a venezuelana casada com o Zé da pastelaria do shopping;
um reformado que veio comprar A Bola e leu o Correio da Manhã à borla;
um menino de seus quatro anitos pela mão da mãe, que não é velha nem alta;
um mercedeszorro muito preto e muito volumoso com um artista dentro a telemobilar grandes aparatos gestuais;
um homenzarrão de pele negra, fato cinza e grandes, grandes sapatos de boa qualidade;
reclamos de papel à cereja da Cova da Beira, a explicações de inglês, francês e chinês (mandarim), à precisão de empregada de balcão para café, à procura de colaboradores com experiência de técnico de manutenção industrial, à PT (“7 cêntimos para todas as redes”).

Nisto, é quase meio-dia: tempo e rio, passagem e permanência.

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Canzoada Assaltante