18/10/2008

SEIS FOLHAS DE LIVRO D’OBRA PARA UMA CONSTRUÇÃO CIVIL DO ENTE



























Fotografias: 13, 15 e 17 de Outubro de 2008




I. QUASE MADRIGAL


Pombal, “Ripa” Café, noite de 15 de Outubro de 2008



Imersos em nevoeiro, esse mar-alto à terra subido, os magnos pinheiros magros sentinelam de costas o nada que (de) fronte os vê. Acorda-se às seis da manhã para nada: para isto: prestar (ou ser) assistência desta gente de madeira imersa em nevoeiro como ela (como eles) negra.
Não está muito frio. Abriram já as padarias-cafés que à ruralidade resgatam a imitação metropolita. Entramos para tomar um café, ter um maço de tabaco para o dia (a obra), contar os minutos até quase as oito.
Chegamos. Os materiais ainda dormem, frigidíssimos: despertamos do frio o ferro e a pedra com o fogo gelado das nossas mãos. Tudo deles nos oferece uma substância onomástica e anónima e colectiva: tintas, trinchas, andaimes (andores), escovas, espátulas, josés, manuéis.
Pago em trabalho (não em ofício) o esquecimento dos pinheiros névoos.
Às onze, o sol abre-se como rosa térmica que é. Uma hora antes, comemos a bucha sentados em baldes fechados, em caixas de mosaicos, descansámos dez minutos, talvez menos.
Agora, ao meio-dia, os pinheiros reverberam como verticais braços marinhos. Um corvo moço telegrafa pedidos indecifráveis. Dois grandes, sabedores da cifra, acorrem e levam-no.
Almoçamos na obra (sentados nos mosaicos hieróglifos): sardinhas em lata, rabos de peixe-ruivo, carne guisada, pão, água: tudo frio, em marmitas de folha e embalagens de plástico glauco. Comemos depressa: gastamos dez minutos a ir e vir, pelo pinhal, a tomar a bica. No café, suportamos o ladrar fiduciário do telejornal. Folheio um diário irrepreensivelmente imbecil. Pulsam-me os pés (as mãos, não.)
Agora são as cinco da tarde, como julgo ter lido algures (mas não importa). As moscas ladraram-nos toda a tarde aos ouvidos e no nariz e nas bocas já cediças de fadiga.
Pouquíssimo antes das seis, lavamos as ferramentas, passamos mãos, antebraços e caras pela água da mangueira grande (serpente verde que dorme em água-terra), partimos, amanhã será outro
ontem.



*



II. OITO POEMAS PARA QUEM


Ibidem



1

O que dormem a esta hora os homens que conheço
sós?
A sós em suas multidões povoadas de sonhos – ou
disto o contrário: deles os sonhos de povoadas multidões – e
de horas como
esta.

2

Dobram os sinos
os corações:
aritmética nenhuma
da dúvida toda.

3

Estrela: breve brilho eterno.

4

Planeio incursões dominicais aos
domínios herdados das publicações.
Aos outros dias não posso, que trabalho tenho
e não incorro: outras obras
me chamam.

5

Terra de cedências e de peixes,
terra de cervejas e de cofragens,
terra de padeiros e de numismatas,
terra de catálogos e de liquidações.

Mar de anuências e de pássaros,
mar de igrejas e de imagens,
mar de derradeiros e de plutocratas,
mar de decálogos e de ramificações.

Água de ausências e de gatos,
água de narcejas e de clivagens,
água de aguadeiros e de vulgatas,
água de análogos e de tremulações.

Fogo de peixes,
fogo de pássaros
(narcejas, mar sejas),
fogo de gatos.

6

Troco a minha vida pelo meu esquecimento.

(Todos o fazemos.)

(Quem?)

7

Gastamos
(quem?)
uma descomunal quantidade de luz
para produzir uma única sombra.

8

Já sorrimos
(nós todos? mas quem?)
em salas povoadas da ausência dos futuros.

Havia gatos de porcelana,
pratos de fruta de barro pintado,
um galo dourava no forno o próprio cadáver,
um limoeiro perfumava o pátio
de uma sabedoria de quarta classe,
perto a igreja rondava suspeitosa
como um polícia vestido de cal,
havia as coisas que são de haver,
enquanto o livro de obra não é só de
dever.

Já mansamente chorámos
(quem?: nós)
em penumbras aluídas de esvaídas ermas casas.
Havia essas eternidades viúvas chamadas
tias,
ginecologias que restolhavam como
trigo ou pergaminhos
no quarto o avô morto ressonava cera,
o limoeiro pàtiava a qualidade citrina do ouro
em decote de moça,
o polícia orava a missa da
proibição,

enquanto o livro não havia nem
nos tanto devia,
mas a nós que
m.



*



III. CASAS ERMAS


Entre o Louriçal e a Figueira da Foz, manhã muito cedo de 16 de Outubro de 2008


Casas mais ermas que planícies.
Como planícies, antigas.
Antigas e devastadas casas ermas.

Deram já sentido aos caminhos.
Agora aumentam deles o desvario.
O desvario, o ínvio deles aumentam.

Beiram a desistência agora, outrora
não: eram vivas, nelas ardiam lume
e pessoas e animais e frutos.

Redutos publicamente furtivos, agora:
como os retratos dentro delas ’inda:
que olham para dentro adentro elas.

Sítios terríveis, terrosos, intocáveis.



*



IV. ESQUECIMENTO


Figueira da Foz, manhã de 17 de Outubro de 2008


Pensei na minha vida como barco.
Esqueci-me de pensar no mar.



*



V. DENTE


Matos da Vila, Louriçal, entardenoitecer de 17 de Outubro de 2008



Tenho-o agora na mão:
inofensivo, finalmente,
o sacana do dente.
Arranquei-mo eu mesmo,
juro pelo mais sagradinho.
De um vizinho,
o alicate trincou por minha mão
quem me mordia noite e dia
– e sem qualquer anestesia.
Morreu, incisivamente, o cão
do canino.
Ente do dente doente: era destino.



*



VI. CASA NÃO ERMA


Casa, Souto, Pombal, manhã de 18 de Outubro de 2008



A mulher saiu a buscar pão, tabaco, feijão, vinho.
Esperamo-la em casa os móveis, as várias aparelhagens que num único rumor imitam e continuam o interior da terra, as gatas que bibelotam esfíngicas, eu que escrevo para não ler nem viver.
No lar, arde o coração da casa, isto é: o fogo que reinstala a metáfora mais que perfeita da vida, isto é: do juvenil arroubo das chamas primeiras à madurez dormente do brasido – até ao encanecer das cinzas.
Na cozinha, o queijo caia-se a si mesmo; maquilhada de colorau, fulge a jóia grená do presunto; o pão lembra-nos que houve ontem, talvez amanhã também – ou ainda.

1 comentário:

Mª Jose M. disse...

«Pensei na minha vida como barco.
Esqueci-me de pensar no mar.»

Outras vezes penso a vida como mar
Esqueço-me do barco perdido n'outro tempo
E... fico em terra!

Sempre bom passar por aqui
O prazer de ler
Até outro instante

MJose

Canzoada Assaltante