03/10/2008

Crónica e Fotolegenda para O Ribatejo


A partir desta semana, n' O Ribatejo (www.oribatejo.pt), à crónica junta-se uma fotolegenda, em colaboração com a fotógrafa Sandra Bernardo. O título genérico das fotolegendas é Olhos Vivos. Aqui fica a primeira da série, seguida da crónica nº 71 da série Rosário Breve.
******
Olhos Vivos – 1

Fotografia: Sandra Bernardo
Legenda: Daniel Abrunheiro

CONTAS À VIDA

Em um instante de inexpugnável perenidade, eis-nos ante um mortal que, pela mão afundada no peito têxtil, deita contas à vida a partir de um olhar que mais parece um ábaco do que a líquida soma de um par de olhos. Na rua portuguesa, toda a efemeridade é apátrida. Esta (a deste homem) também, mas um pouco menos, afinal de (ou feitas as) contas, do que aquela que nenhuma fotografia resgata ao resto zero da passagem.

******

Rosário Breve nº 71



Fala o Comovido

A maturidade está a tornar-me lingrinhas.
Tudo me comove, mil raios me partam. Juro. Tudo me enternece. E não, nem é de criancinhas loirinhas como as espigas do trigo que estou a falar. É pior. Por exemplo: a velhacaria. A velhacaria comove-me. Como a Pátria está cheia dela, suspeito que os meus últimos anos vão ser mui lacrimejados. Hei-de proporcionar um triste espectáculo, receio bem que hei-de. Estais-me a ver: um tardio quarentão com lágrimas octogenárias perlando de cristal as dioptrias. Triste.
A roubalheira também me derrete todo. E como a Pátria etc. de roubalheiras, estais-me a ver fungando a toda a hora a gota-de-figo dos ranhosos perpétuos. Isto não vai ser alegre. Penso que é da deformação profissional. Durante alguns anos, pertenci a uma classe que, precisamente por ter perdido a classe, se extinguiu. Fui jornalista. Agora sou só cronista, que é um estatuto que advém a uma pessoa quando desiste. Eu desisti. O meu trabalho agora é enternecer-me em crónica numa comoção de última página (mas a cores, vá lá).
Também as figuras por assim dizer icónicas se me transplantaram. A Dama das Camélias e a Rosa do Adro já não me condenam ao pranto. Prefiro-lhes a Eduarda Maio e a Fernanda Câncio. Bernardim Ribeiro, João Roiz de Castelo-Branco? Nada. Nem bucolismo, nem palacianismo. Mais cativa formosura triste me pinga coração adentro um Mário Lino, um Miguel Portas. Em vão recorro aos víveres mentais que há trinta anos enceleiro para nada: Beckett, Nemésio, Sena, Bradbury? Qual quê. A melancolia está toda na pança oleaginosa do Herman, no lustral desentendimento metafísico daquele rapaz que faz “livros”, o Zé Luís, no inequívoco assombro quando chove dos presidentes de câmara-tv, na artificiosa gaguez dos noticiários da TSF. Isso sim, é que é movente e comovente.
De modo que isto me anda assim. A manquejar para velho com nervosas vísceras de passarinho anacrónico. Desconfio que é por ser tão portuguesa a minha condição. Já tentei ser espanhol, mas não consigo jogar hóquei-em-patins nem planificar o futuro.
Não, nem rosas nem camélias.


1 comentário:

Manuel da Mata disse...

Eu cá, homem previdente e mais espanholado, este ano vou fazer um PPR.

Canzoada Assaltante