30/09/2008

SAÍDA DO SANTO SETEMBRO e outros poemas mas poucos

Viseu, entardenoitecer de 30 de Setembro de 2008




DIFERIMENTO

A minha Mãe, como a Vossa, é por vezes a claridade
mesma: quando, achando graça a um dito juvenil,
ao que ouviu celebra de riso mais ainda pueril
do que o que lhe disse algum filho, ou filha, na outonal idade.

Octogenária já, já quase cega, vê ’inda, sozinha em casa,
viventes muitos, embora mortos em outra vida.
Gosta de vê-los, a magana, e esconde-os na asa
que, tal como a casa, é já, ó Mãe, tão diferida.



DOURAÇÃO

Quase nunca doce do anis a flor da introspecção,
resulta sempre quase amarga no horto do coração.

Às vezes (muitas vezes), é por um nada:
o gume de uma esquina, uma avenida esvaziada.

Outras (muitas também), pelo mínimo tudo
de tudo ser outro e o mesmo e contudo

próprio alheio: a furtiva laranjeira noivada
de anéis mil de ouro nunca esposada,

a fatia da porosa melanc(ol)ia expedindo o Verão
e todos quantos nele são.

Fere então o sino a ave sonhadora
que vai e voga e doura e não dura.



DÍSTICOS PREPARATÓRIOS DA SAÍDA DO SANTO SETEMBRO


Se a tristeza te tocar pelas ruas como a um cão,
dá-lhe por comer a tua sombra, escuro pão.

Floridas raparigas trinam dentecristalinos sorrisos?
Atira-lhes as brandas pedras dos olhares furtivos.

Fechados em fechadas casas encerram vidas mistérios.
Outras sequer mistérios, tão-só finais limpos e sérios.

Tinta de asas usam as aves para riscar
a escrita ilegível: os poemas do ar.

(Eu vou pelos da água e do vinho:
homem que sou, só voo baixinho.)



SAÍDA DO SANTO SETEMBRO

I

Sucumbe hoje em suor de santidade o suave setembro.
Mais branda ferve no seio das árvores a seiva viva.
Pêssego e ametista é ’inda a pele pessoal dos cidadãos,
que de todo se não recobriram ’inda, dada a brandura.

Madreperla-nos já a lua futura, que outubra a gás
frio e dura prata. Nos lares, aurígneos gravetos
ourejarão o rubi e as assadas viandas, perto
de que algum tostado gato sonolento, nos pátios ventando.

Por enquanto não. De setembro as horas últimas
atiram-nos sedas e musselinas, fadas fados silvando
não estrídulos. Uma paz de vitória alguma toma
o sítio, sítio sendo ao que sombra deitamos,

nós, sombras de sombras. Tudo na cabeça me
outona folhas, falhas e filhas: matérias de pensar,
quando um setembro se me nos despede
até mais não ver, nem ser.

II

Acontece os cidadãos perderem o próprio nome,
volvendo-se furtivos animais acossados pela predação.
É pelo cair da folha: faz o coração de charco
de óptica água depressa cega da Queda.

Não digo isto com força de lei: é mais
como me sinto, urdindo o outono
dele as auriflamas decadentes.
É mais como ter frio ao sol.

De uma janela alta caem escalas de piano,
escarlatam sardinheiras quais domesticadas papoilas.
Vista de baixo, a volante pomba une os pontos
derradeiros do folhedo das tílias.

Na praça, coalham famílias
o soro que da ceia suma a hora.
Mais frio aqui dentro do que cá fora,
esqueço o meu nome, chama-me.

III

Chama-me, chama auriflama, que outoniza a vida
não ser primo nem vero: aves voando virão que verão
a ver no setembro que vai
o outubro que vem – ou não.

Nenhuma dor nisto, nem urgente euforia.
Brônzeos sinos só e sós, indiferentes
à eternidade e ao horário comercial.
Por finais de outubro, há já luzes de natal.

(Zénites, tântalos, sísifos e nadires
ouropugnam argênteas demandas.
Mais porém idos há do que há porvires:
possante é o passante rio, mas duplas as bandas.)

Resistamos um pouco ainda, ainda assim.
(Hospícios e prisões servem h’ora a sopa.)
Vistamo-nos de luz, é só mais um fim:
pérsica ametista, setembrina roupa.



ÚLTIMOS DÍSTICOS DESTE SETEMBRO

Confirmo as janelas velando a noite,
a noite volando quieta nas casas.

Confirmo a maravilha das cores, mas só de cor,
que a noite anoitece até a paleta da memória.

Confirmo a quietação escondida das aves,
nos beirais pisando estrume e cascas de sementes.

Tinta de asas usaram para pintar
a tela invisível: as pinturas do ar.

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Canzoada Assaltante