17/07/2008

Homem Desorientado com Chapéu (para ler enquanto o cão ladra em cima)

História nº 72 da rubrica 1002 Noites
(NB: há pontuais discrepâncias entre o dito e o escrito - façamos de conta que é de propósito.)
Produção do Anoitecer do Tom Dela
– 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).

Sonorização de José Eduardo Saraiva.




Viseu, manhã de 4 de Abril de 2007


1
A manhã de Abril não conseguia decidir-se. O nevoeiro e o sol alternavam como o veludo e o diamante. O comércio e a religião já estavam disponíveis: lojas e igrejas franqueavam os pórticos. Os transportes de mercadorias e os de pessoas evoluíam no aperto multitudinário da quarta-feira. Pombas trepavam ao rebordo da fonte luminosa para beber, perto de que brincavam crianças ciganas. Um polícia de trânsito sorria ao receber os documentos de uma automobilista solteira.

2
O homem desorientado andava em pleno Rossio caligrafando passos de uma incerteza total. Derivou pelo corredor de colunas da Caixa de Depósitos, parou à entrada do jardim, voltou para trás, espreitou pela porta de vidro da Câmara Municipal, voltou para trás e acabou sentando-se no rebordo da fonte luminosa, aspergido pela poalha de água.

3
O homem desorientado era protegido pela dupla indiferença da urbe e da manhã. Só não estava a salvo da literatura. Na viela descendente, uma casa de churrascos ardia frangos aromáticos. O homem parou do lado de fora e ficou a assistir à dança circular e terminal da comida. Quatro meliantes que passavam com maneirismos de hip-hop deram-lhe uma palmada no chapéu, que caiu no chão sujo de molho picante.

4
O homem voltou-lhes as costas e continuou a descer, em cabelo, a viela começada pela churrasqueira. O polícia de trânsito tinha visto tudo. Soprou no apito. Já não sorria, o agente. Mandou parar o quarteto de macacos e ordenou ao da palmada que recolhesse do chão o chapéu do homem.

5
A cidade parou ao silvo policial. O quarteto interdito mal se atrevia, na expectativa, a respirar. O polícia e os quatro gajos desceram a viela até o ponto em que o homem desorientado parara também. Era em frente a uma retrosaria. O homem desorientado olhava luvas de lã e cachos de fita elástica.

6
Os quatro delinquentes tiveram de apresentar, um por um e em língua nacional, um pedido de desculpas ao homem desorientado. Ele respondeu:
– Está bem. Agora o chapéu.
O da palmada deu-lhe o chapéu. Sem uma palavra mais, o homem desorientado saiu de cena. O polícia virou-se para o quarteto e disse:
– Andor.

7
A cidade começou a envelhecer de repente. Tinha passado a hora de almoço. As igrejas couraçavam-se de sombra, ases de pedra na manga de Deus. Nos pátios do bairro social, mulheres ciganas descascavam favas e depenavam pombas. Sem sapatos, uma lojista vestia um manequim na montra. O reforço dos collants escurecia-lhe a cera dos calcanhares. Um farrapo de jornal francês trapejava pelo chão à mercê da brisa.

8
Catrapilos tripulados por eslavos mastigavam pirâmides de terra para que o novo hipermercado, antes ainda do Verão, pudesse botar seus ovos de ouro falso. Aposentados mirones e taxistas afectos ao antigo regime relatavam a obra de cotovelos oxidados na grade de ferro do passadiço. Mulheres do campo, aleijadas de seiras, galinhavam na paragem da carreira.

9
A Europa é mais acima. A tarde escolheu o sol, que já sangra roxuras a ocidente. Enferrujam a seis metros de altura os antigos depósitos de água da estação do caminho-de-ferro. A noite é sempre contemporânea – e é noite, agora, como foi e há-de ser.

10
Talvez eu devesse ter tido, ao menos, uma palavra de reconhecimento para com o senhor polícia. Mas as palavras desorientam-me. Calo-me para não perder tudo. Calo-me para não perder tudo de vez. Hoje, com o chapéu, funcionou.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante