17/12/2007

Árvore do Anis entre Árvores




I

Quer’ eu da sozinh’ árvore a’ utonomia
que solidária é parte de bosque.
Quer’ eu del’ a noite e quer’ o dia,
qu’eu sou mais um a menos de tod’ os que,

ant’ uma ave, árvore ou mulher,
’inda um eu q’ ainda é e quer.

II

Não sabia os nomes das árvores.
Tenho a casa e o corpo cercados por elas – e não lhes sabia os nomes.
Saí de casa com o corpo todo (já o fiz muitas vezes).
O corpo e eu fomos descendo (há anos que o fazemos juntos) pela álea folhada a ouro ruivo.

Havia um homem aparando sebes.
Parei junto dele, fui apontando cada árvore.
Ele foi recitando cada nome de cada uma.

Joaquim Pereira.
Maria Laranjeira.
Leonor Figueira.
Teresa Limoeiro.
Carlos Oliveira.
José Abrunheiro.

III

Longe que andes, sejas e estejas, não deixes
de usar-me os olhos para ver quanto te dou:
estas ruas despovoadas, o pássaro de grito
náutico no mar convexo do céu, a árvore
que desde manhã anoitece, o cão magro
pensando sozinho entre muros.

Nada me é tão próximo quanto a tua distância.
Ando por aqui, o casaco preto sobe-me dos joelhos
à garganta como uma agonia portátil.
Mas está tudo bem, repara, a noite conta histórias:
vê o vento dando nas árvores, essas ínclitas e inclinadas
pessoas vegetais que não andam mas são e estão,

como tu não.

IV

As mulheres dançam contabilidades, mercearias.
Por vezes entregam-se um pouco, ele há dias.
No mais, resistem e existem em dura glória.
Delas o credo reza a história.

Não conheço mulheres. Conheço o vidro.
Sou de uma hialurgia fidelíssima.
Lembro de Dulce a irmã, puríssima,
tão cedo ida, tão tarde sido.

Sou do tempo da permilagem. Escrotos
mal ensacados procriavam
bebés magrinhos que se ausentavam
da rua e dos casebres sujos e rotos

como bonecas de partir o coração.
Partiam as mãemulheres, em minha opinião.

V

Não, Mãe, não tenho nem muita nem pouca pena
de me não ter tornado no herói que, menino,
prometi ser.
Sou um homem que entristece sem ruído nos cafés.
Comove-me ainda, sim, não a visão mas a lembrança
da rosa púbica das mulheres malbaratadas
de solidão.
Cavalos e corvos aprisionam a luz negra
e os meus olhos.
Exalta-me o vento nas árvores – já não posso
combater essa alegria.
Sei, Mãe, tão poucas coisas. Tão poucas,
que escrevo versos para não perder tudo.
Se o meu Pai aqui estivesse, pagar-lhe-ia
um quartilho de água mineral
para que lhe voltasse a água aos olhos
que tanto tempo sem nós lhe secou.

Só sou um criminoso quando amo.
Às algemas da memória entrego as mãos,
a redactora como a solitária.
Algemado entre árvores, esperando o vento,
Mãe.
Cavalos de ar escuro com corvos às costas
fremem, doentes de desejo, ao longo de áleas.

Quando vivia nas cidades, Mãe, tudo era pior.
Fustigava-me a voz tóxica dos carros.
Doíam-me as torres onde encerram crianças e cães.
Só gostava dos bailes: ateneus pejados de putas
latinas escarafunchando dentições e pasodobles,
de machos lustrais de caspa envernizados pela icterícia
e de velhas tão velhas, que os tremoços
eram salgados a carbono-catorze.
Ainda assim, devo ter sido feliz: pouco
escrevia, então.

Raparigas gardeniavam ruas perfumadas
da passagem delas.
Rapazes sulcavam a nado o rio perpétuo,
o rio que nos ensinou o desejo de morrer,
como ele, no mar.
Lia Correia Garção, aprendia a ser usado
pelo coração.
Nas noites de estio, as estrelas pulsavam
como duras flores minerais, da fábrica de bolachas
chegava a mensagem doce que pacificava
os sonhos.

Não sei que raio fiz de tudo isso.
Resta-me o vento nas árvores
em mínimo e último alento
de heroísmo.

VI

Há ainda um resto de lenha, de vida um pouco ainda.
A casa enobrece-se de heráldico bolor.
Mandíbulas de frio cerram-nos os ossos, linda.
Não creio que outro alguém fosse melhor.

Era apenas, ’inda há pouco, a pouca vida
que do caderno gela a pura vontade.
Eram os mesmos ossos, à partida,
por avenidas frias da cidade.

Eram as rimas. Eram os reclamos luminosos.
Era tudo ter sido e repetir-se.
Maravilhosas putas e chulos maravilhosos:
deles e delas vir-se e parir-se.

Será portuguesa sempre a agonia litoral.
A’ mendoeira em flor, a árvore do anis.
Dizer de cor que se é triste e portugal.
E bendizer os pais e o país.

Há ainda alguma fruta ao balcão.
Peixe calcina zinco lavatório.
P’la magra rua passa o magro cão.
Primeiro Viriato, depois Sertório.

As tretas. Os coitos dados contra a alma.
E os infectos afectos esponsais.
Apartamentozitos e triste calma
sem ontens nem montes nem vendavais.

Calma. Uma paz d’ esp’rito nos subjugue,
pastelarias planam ao rés-do-chão.
E que a velhice, ao menos, nos enxugue
a néscia cegueira da paixão.

Agora, desde que tenho têvêcabo,
viajo alaskas, tundras, taigas boas.
Antigamente, não, fritava o rabo
em eldorados fados de lisboas.

Há ainda um resto de lenha, um carapau
moído a alho, colorau, azeite.
Ser português agónico não é mau:
sempre dá flor, anis, amêndoa e leite.

VII

Pendem das árvores os anjos.
Cheiram a homens e a mulheres
idos e por vir.

Pagelas pergaminham estéreis santos
em nichos de veladas ramagens.

Deus deixou tanta fruta apodrecer.

VIII

Comprimo a violeta do coração
entre folhas tocadas pela graça
irrisória da rimação
que às vezes, caraças, passa

por poesia – mas não.

IX

O homem vestido de azul à berma do rio.
A mulher passando verde entre roseiras.
A morenidão da catedral contra a cinza de Deus.
O colesterol dos autocarros nas artérias da cidade.
E a memória que me usa como a moeda falsa.

As pastelarias açucaradas de solidões.
A alta tensão das linhas, longos os campos.
O músculo da língua movendo tudo.
O hotel pobre onde os artistas.
E o amor que me move como a cavalo em tabuleiro.

A rosa crescendo de lado para ser vidro.
A barriga da mulher pensando vermelho por dentro.
Os passos perdidos como moedas em troca de calças.
O desamparo como um mel agarrado à pele.
E a infância que me guarda como data em mármore.

A gare ferroviária varrendo ventos de partida.
As pessoas à janela olhando como janelas.
Os cavalos ocupando as casas nigérrimas.
A lágrima horizontal dos arrozais.
E a morte que tenho certa como um retrato na sala.

O nascimento dos novos contribuintes.
O subsídio moral da miséria do corpo.
O luxo de uma noite lacada a mulheres.
Os homens interessantes com cálices e segredos.
E a minha vida escalímetra de azimute nenhum,
entre árvores.

X

Uma pedra de sal na ponta da língua
indica à criança a amargura a vir.
Também lhe ensina o trato humano
do peixe morto por ela, em prata.

A uma luz de fim de dia, pode a criança
ler o trato do ouro em o mais pobre papel.
Maria! – chama dela a Mãe, também criança,
tão cedo tão casada com Manuel.

Uma língua de presunto amarelece
no mosquiteiro breve em vão suspenso.
Dorme a um canto a insone avó emudecida,
sente-lhe a criança a escatologia.

Tudo é pessegueiro, tudo é dia
no clarão do quintal iniciador.
Uma criança é breve: quem lho diria,
fundada ou não fundada no amor?

Maria! Manuel! Quem vai ao sal?
Já ferve a praia escumas cronológicas.
Passa um vento de areia, uma luz fria.
Quem vai ao sal? Manuel! Maria!


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Datas:

I – Caramulo, noite de 6 de Dezembro de 2007
II, VII, VIII e IX – Caramulo, tarde de 11 de Dezembro de 2007
III – Caramulo, entardenoitecer de 10 de Dezembro de 2007
IV e VI – Caramulo, noite de 10 de Dezembro de 2007
V – Caramulo, noite de 9 de Dezembro de 2007
X – Caramulo, tarde de 12 de Dezembro de 2007

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro amigo, cá pa mim tás no melhor momento de sempre. Esta merda é genial. Acho eu.
Antº Luis

Anónimo disse...

«Nas noites de estio, as estrelas pulsavam
como duras flores minerais, da fábrica de bolachas
chegava a mensagem doce que pacificava
os sonhos.»

Também sei dessa fábrica a doçura.
Belos poemas,Daniel Abrunheiro!

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Naná Manfredini disse...

Adorei!
É bom ler poemas desse nível...
Abraços.

Daniel Abrunheiro disse...

Gentileza vossa.

Canzoada Assaltante