06/12/2005

O Cedro e a Lua - XIV - 17 de Novembro de 2006

HSC, 17 de Novembro de 2005, 5ª feira, 7h49

Despertar pouco depois das 6h00, justatempo de estar revivo. Um kiwi, uma laranja, um banho forte, extenso, esfregado. Um cigarro fumado com mais dois camaradas no cubículo do lavatório-sanita. Risotas matinais. Cachopices adultas. Mais de uma hora para o pequeno-almoço. Já deu tempo para ler as seis páginas de Uma Viagem quase Trivial, história pachecal inserta na 2ª Série dos Textos de Guerrilha. Agora, uma volta ao ar livre, fino, frio e lavado do novo dia, rasando o cedro titular na manhã escrita.

Mesma manhã, 8h29

Duas voltas higio-respiratórias (mas com tabacório) em torno dos pavilhões 3, 2, 1. Primeiro, só com CMS. Depois, também com FP e JH. Na volta, comentamos a boa qualidade da terra para ervilhal na quinta de Terapia Ocupacional. E CMS dá-nos noção de poda de árvores. Não deixar medrar de mais, mantendo a folhagem. Recorre a palavras como “canoco” e “olhos”: palavras vegetais de uma ciência tão antiga. Ouço calado, vendo como salta, recolhe um “braço” frágil e o “limpa”. Gente da verdade das palavrárvores: gente de verdade, gente de palavra.

Mesma manhã, 10h59

A partir de segunda-feira recente, a mudança de certa pastilha tem-me dado uma seren(al)idade diferente: mais laxa/lassa, sobretudo no termo matutino, uma pax química desfrutadora de arborescências e oxigenações. Bons despertares, bons duches, bons pequenos-almoços. Mas, também, leitura mais vagarosa e mais lerda dos escritos alheios (Pacheco e Conrad, de momento). Não muitos cigarros. O café, em copos de plástico, muito apreciado, em aroma, calor e doce, na língua e no palato e na respiração. A caligrafia, ela-também, um tanto incipiente, escolar, pueril. Muita decisão necessária para um passeio ao ar livre, a escolha de má poltrona de napa na sala-de-convívio, a aceitação ou a declinação de um convite para um par de partidas de matraquilhos ou sueca. Erotismo, nenhum. Nenhum pendor recordatório-onanístico. Nenhuma epifania de pensão: nenhuma micção científica, portanto.

Tarde de 17, 14h10



Mulher oriental em renque de árvores:
japonesálea.
Homem de blusão amarelo: um português impermeável
de sapatilhas brancas.
Visões no regresso pós-prandial da cafetaria.
Sossego solar.
Digestão farmacológica e de bacalhau.
Calma.
Pés quentes, forrados a lã e cabedal.
Mulher passando na estrada (quinze
metros, ombro direito da visão), casaquinho
de lã cor-de-tijolo. Também
portuguesa: de óculos.




Mesma tarde, 16h20

Alta – amanhã de manhã. Consulta com a minha médica e a minha assistente social. Tudo encarreirado. S. amanhã, também, na consulta de saída. Boa notícia. Não beber. Viver. Escreviver.


Noite de 17, 18h17

A degradação continua. Nos termos do Hospital, a instituição não se responsabiliza por empréstimos, dívidas, negócios estabelecidos entre os doentes. Louco por tabaco, o deprimente/depressivo/deprimido/divorciado/doente/decadente/CMM acaba de vender o (bom) casaco por dez euros e um maço de Detroit a HM. Já está lá fora a fumar o primeiro dos 20 cigarros. Veio logo dizer-me que “quando receber os dez euros do casaco” (isto é, vendeu fiado), me paga o que lhe emprestadei. Disse-lhe que esquecesse. Vou-me embora amanhã. Isto entristece. JH usa a pulseira de prata ex-CMM. HM deve os dez euros a CMM, além de dois que pediu emprestados hoje à tarde a CMS para comprar um maço de tabaco (o mesmo com que “sinalizou” a aquisição do casaco a CMM). Hospital/hospício/presídio: alma, mala (em castelhano, ), lama (em português).

Mesma noite, 21h33

Antes do meu derradeiro chá-bolachas (a que aqui se chama “ceia”) deste internamento. Sessão vitoriosa de sueca. Eu e HM despachámos, primeiro, JH e CMS, depois FP e RC: parciais de 5-2 e 5-1, respectivamente. CMM, afinal, fica mais tempo. Falou com a assistente social. Vai ter visitas de família (talvez até do filho e da ex-mulher) na 2ª feira. Espero que lhe tragam roupa lavada e dinheiro. Por dignidade, que não por esmola. Quanto a mim, volto à civilização da barbárie. “Barbárie” começa, naturalmente, por “bar”: cuidado com o cão. Com o “alcãoól”. Raios partam o coparete. Desenvolver, quanto antes, a história de Camilo Ardenas. Estudar muito, ler muitíssimo. Dar explicações a xis euros à hora (falar com o Fernando Nabais a propósito): possibilidade. Ler Lowry, Beckett, Faulkner, Pinter, Platão, Sófocles. Tudo isto é tão fácil, que basta estar vivo e sóbrio. Só brio.

Canzoada Assaltante