02/01/2022

PARNADA IDEMUNO - 862 & 863

© R.D.A.


862

Quarta-feira,
29 de Dezembro de 2021


Faz hoje setenta anos, nascia o meu Irmão Rui.
Morreu em Fevereiro de 2020, pouco falta para dois anos sem ele.
Era o quarto de uma prole que, como sétimo & último, culminei.
Estas palavras são quanto posso para que um pouco renasça.
Ou: tal que, de todo, não ainda, não se vá embora.

Projecto no meu Gato uma tristeza a que o sei imune.
O dia, de indecisa coloração, dizem que chega aos 18 centígrados.
Morreu além-Atlântico – e o mar da morte mais que metaforizou.
Li alguns versos de outro notável morto, Manuel António Pina.
O poeta terá morrido há dez anos, quando for 19 de Outubro de 2022.

Hemograma & cronograma tendem a confundir-se-me.
Pus rodando a única ópera de Debussy, Pelléas et Mélisande.
Já a tarde deste antepenúltimo dia grassa fora & dentro.
Não me parece que uma sesta me resgate da tristura.
Hei que aguentar, suportar o inominável, ser homenzinho.

Entendo & aceito a perfeita inutilidade deste poema.
A ideia de nunca mais o ver impõe-se-me em grande estilo.
A autoridade do inelutável entesa o lençol sobre que escrevo.
Sim, deitei-me para aniversariar um irmão defunto.
Jacentemente, iludo a verticalidade imperiosa da dor.

Nada disto é santificação ou – mui menos – autobeatificação.
É uma data redonda, setenta anos, um nascimento gorado.
É também completamente privada, satélite de planeta nenhum.
A música de Debussy melhora o meu quarto, frúo-a sem pressa.
A vizinha do prédio contíguo pôs roupa preta a enxugar.

Vi pela vez derradeira esse meu Irmão no funeral de alguém.
Ele estava sentado com amigos da sua geração à frente da igreja.
Cumprimentámo-nos, pouco falámos, não sabíamos.
Não sabíamos que era um ultimato, aquele idílio.
Nem concílio afinal foi, estás-bom-?-cá-se-vai-desandando.

“Je vois une rose dans les ténèbres.”
(Canta Mélisande, parece-me.)


863

Também de cada Filha minha a infância se escoou já
pelo ralo-vórtice do tempo humanamente (des)entendido.
Por mim, sou do tempo da marca de gelados Rajá,
era boníssimo o de chocolate – lá no verão, bem entendido.

Raios de sol não sobrevieram em a tarde corrente.
Vai a inumar hoje em Ançã a Lurdes do António Acácio.
Reses somos todos do inomin’abominável sacrifício.
Sabemos que factura nos passa este (in)restaurante.

Ratos-laboratoriais, rodamos em vão o carrossel alquímico.
Ex-petizes-ex-felizes, que nos adianta ora o campeonato?
Gestuamos aparatos mudos de pierrot-mímico
– ri-se-nos de nós a vizinha sem pudor timorato.

Pequei por excesso, lá-quando amor chamei ao desejo.
O animal-em-mim obliterou-me quantos estudos
houvera até então feito em serões os mais sisudos,
sim, enganei-me & enganei, já só mereço despejo.

De certa vez (nocturna, face à Associação do Louriçal),
recebi telefonema de uma pessoa à rasca q’era minh’amiga.
Separara-se do marido, coisa afinal trivial,
moda que ainda canta a mais velha cantiga.

Aparei como pude as arestas de seu desconcerto:
fôra ela a trair, afinal, não o contrário.
Tudo passou ao cabo, de 2000 anos só há um calvário:
e a senhora entretanto morreu, cedeu, não está longe nem perto.

Não fui ao funeral da Lurdes, foi sim a Mafalda.
Eram primas-indirectas, estimavam-se muito.
Somos poeira-de-estrelas mais que sal-da-
-terra, o nosso ser é um estar daquele mais fortuito.

Peco & perco – haja quem de si contrário diga:
moda que nem pega, nem chega a cantiga.
Também de minhas Filhas
etc.

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Canzoada Assaltante