01/12/2016

SIMPLESMENTE MARIA - (republicação) - in Rosário Breve nº 483 - in O RIBATEJO de 1 de Dezembro de 2016 - www.oribatejo.pt





Simplesmente Maria




O título desta crónica é copiado.
Era como se chamava uma fotonovela (tenebrosa como todas as foto, rádio e telenovelas) que na minha infância enfraqueceu as coronárias a muita costureira. Directamente provinda da pobreza, a Maria em questão chegava à cidade montada num burrinho delicodoce, alcançando, depois de peripécias mil ou novecentas, o clímax e o casamento. Não m’alembra o resto da história, pelo que passo a especular.
Tudo acaba quando acaba em casamento. Ou não? Dissestes vós alguma coisa? Não? Posso continuar? Enfim, agora que o meu outono particular começa amarelecendo até as folhas dos cadernos onde lapijo estas histórias irremediáveis, dou por mim pensando em Maria. Deve ser ela, hoje, mulher dos seus cinquenta e muitos. O mais certo é ter-se separado do engenheiro ou médico ou arquitecto ou advogado de sonho com quem, então, aliançou suspiros. Deve ter-se fartado das patilhas dele, do apartamento em Santo António dos Cavaleiros, das pontas arrefecidas de Ritz a boiar no laguinho triste da sanita. Talvez ele lhe tenha prometido um futuro de manteiga que com os anos se volveu margarina, simplesmente margarina. Quase aposto que ele teve e manteve amantes enquanto ela se aborrecia no cabeleireiro a erguer vasos de cabelo à senhora Knorr e à senhora Maggie e à senhora Vaqueiro e à senhora Dabri e à senhora Tokalon e à senhora Creme Byly. Mas também pode ser que, aos cinquenta e tal, se tenha ela arranjado com um rapazinho directamente provindo da pobreza para tentar na cidade uma carreira de cantor pleibeque ou coisa assim. (O bom de escrever é que tudo pode ser.)
O futuro torna-se, com o passar dos anos, menor do que o passado, essa é que é essa. O passado é o sítio mental onde as donzelas pobres, escarranchadas em burrinhos, continuam chegando à cidade pirilampada de reclamos luminosos na noite cosmopolita. E é também, bem mais bastas vezes do que gostaria, o meu sítio. Nele busco, com a ponta do lápis, as referências mais ínclitas, os mais egrégios avós, os heróis de um mar a que basta somar ia para dar Maria.
Maria que, sozinha de novo, liquida o salão de cabeleireira e regressa, não de burrinho mas de Clio, às berças natais. A taberna tornou-se snack, o padre já não é Sacramento mas Eliseu, a primária fechou por falta de crianças, o outeiro onde as cabras pastavam com lenta filosofia está agora crivado de rápidas maisons fechadas onze meses ao ano, a avó de Maria simplesmente morreu de ter noventa anos há mais de trinta, os cães já não comem broa e o pai de Maria, que lhe perdoou a fuga, lacrimeja pingentes de velho comovido à aparição da filha, cujo telemóvel começa a tocar quando ela o abraça.
Estou, sim pois, é assim, agora já não dá, não, se voltar é porque acabaste de vez com essa sirigaita, tu é que sabes, tu é que sabes, só tenho de saber que acabas de vez, é assim, isso e as beatas no laguinho triste da sanita, caso contrário não dá, Bernardo. Bernardo promete que dá.
O passado acaba sempre bem.

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Canzoada Assaltante