15/09/2016

ENCONTROS DE BOLSO - republicação de texto, agora como crónica n.º 11 da série CONTRA OS CANHÕES - in Quinzenário TREVIM (Lousã), edição de 15 de Setembro de 2016



Encontros de Bolso



Junta-se um sem-fim de coisas nos bolsos. Cada um (não) sabe das suas. É preciso despejar os bolsos de vez em quando. Caso contrário, o acumulado toma-nos conta da vida.
Ia eu no comboio descendente. Meti a mão ao bolso à cata de uma afiadeira. Encontrei um lenço agora enxuto, resto mortal de um amor que deixou de valer a pena molhar. Encontrei a chave de um carro que não tenho há muitos anos por me ter esquecido de onde o estacionei. Encontrei uma unha que roí numa quinta-feira do ano passado. Encontrei o calor da minha mão. Encontrei um peixe que se tinha abrigado de não estar a chover. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz do meu Pai a dizer “há arroz de frango está no fogão”. Encontrei o arroz, mas não o meu Pai. Encontrei uma maneira diferente de escutar as árvores. Encontrei um pássaro desenhado a feltro azul por uma estrela de cinco pontas. Encontrei uma estrela de cinco pontas que era, a feltro encarnado, uma mão de menina. Encontrei uma carta impreterível do banco. Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro. Encontrei uma ponta de cigarro fumado por outra boca. Encontrei um jornal publicado antes de tu teres nascido. Encontrei duas folhas de árvore: a nervura de uma indicava a certeza da morte, a transparência da outra demonstrava a necessidade de nascermos. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz da minha Mãe a dizer “se não quiseres o arroz estrela ovos não sujes o fogão todo”. Encontrei a tatuagem do marinheiro que todos deveríamos ter sido. Encontrei um brilhozinho nos olhos sem olhos. Encontrei o mapa dos rios do sangue. Encontrei a visão aérea da solidão. Encontrei uma pulga que fazia poupanças há quinze anos para comprar um cão maior. Encontrei a fotografia que vê a minha irmã vestida de verde a olhar pela janela uma manhã sem remédio.
Só não encontrei a afiadeira com que costumo aguçar o lápis que escreve estas histórias.

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Canzoada Assaltante