12/02/2015

Rosário Breve n.º 394 - in O RIBATEJO de 12 de Fevereiro de 2015 - www.oribatejo.pt

A cera não é ruim, o defunto é que sim

Um país de pobres desgovernado por miseráveis – conheceis algum?
Eu, sim. E não queria.
Conheço um onde a vozearia é muito mais iracunda e a revolta muito mais veemente quando um qualquer padre é trocado por outro padre qualquer do que quando o posto de saúde, os correios, a escola, o tribunal e a própria junta são encerrados até (nunca) mais ver. País-carapau, que só assim faz escabeche.
Uma cidade capital de distrito (e de província) inçada de lixo e de contentores de recolecção estripados à maneira de fins de acampamento de rave – conheceis alguma?
Eu, sim. E não queria.
Conheço uma que Garrett imortalizou, por exemplo. E não sei se o mesmo hoje faria, ele, a tal morredouro de miasmas.
Tal país e tal cidade parecem andar e trazerem-se a si mesmos num virote esquisito. Varrer as respectivas testadas é coisa que nem esta nem aquele fazem. Nem à chicotada. (Da psicológica, claro, que da outra nunca a demos a sério, isto ainda não é a Arábia Saudita e as sanzalas ultramarinas há muito as extraviámos.)
Qualquer antístite, mesmo o mais reles, é gajo para abichar sem esforço mor os cimélios da parvónia – digo-o assim porque ando a ler o santareno Veríssimo Serrão tão saudoso de seu Marcello exilado, rebate lhe(s) dando o coração contrito.
Eu nem quero imaginar o que não faria uma Suíça, por exemplo, se lhe dessem nem que fosse uma só légua de litoral do nosso. Um Tejo destes adentrando as primícias do Atlântico por quanto é regadio, lezíria, sequeiro, céu até. E se esses acantonados e multilingues helvéticos relojoeiros/queijeiros/banqueiros pudessem dispor deste sol sem neve de quase todo o ano incidindo a pique sobre planuras tão mais úberes quão mais desertadas? Não quero imaginar. O que damos à Suíça é emigrantes de não-retorno e porrada no hóquei-em-patins (mais daqueles e menos desta, aliás).
Venho há uma vida gastando despicienda cera com o ruim defunto que, todavia, me é, no (des)concerto das nações, o único que alguma vez me interessou, interessa e interessar há-de – Portugal. Portugal e o Ribatejo dele, já agora. Continuarei tal gasto, bem no sei, desgastado e desgostado, mas exalçado sempre por (in)certa íntima obstinação a que só não chamo patriótica por poder ficar, hoje em dia, malvisto com o epíteto.
Não frequento doutos grémios. Nem subidos sinédrios. Nem vou, sabido, à TV parecer sabedor – gosto bem mais de iscas com elas e de ginjas idem.
Vou mais pelo escalpelizar da pública coisa atoardando indignações miudinhas de cigarra farta de ser formiga.
Terçando armas pela Língua – é ver o estropiado idioma com que a mais soez ignorância escreve, às costas e a pretexto do execrável AO 90, os rodapés dos telenoticiários e demais imundícies afins.
Objurgando o fedelho que fizeram, primeiro, cola-cartazes, depois assessor, depois (tumba!) edil e/ou, até, ministro da Relespública.
Exprobrando a demora inaceitável da adjudicação do Ministério da Saúde, no seu todo, à confederação nacional de agências funerárias: pois não é ele o mais ingente gato-pingado que por aí negreja o mais negregada, o mais mórbida e o mais mofinamente? É. É pois: legionella, urgências, hepatite C em infindo e cursivo etc.
Increpando a emanação morbífica da mui bela, mui antiga e mui mal empregada Scalabis, cuja multissecular vetustez merecia (e merece) outro futuro. Ou outro galo no campanário. Ou outro povo cá em baixo. Ou, pelo menos, menos lixarada por tudo quanto é canto, chiça.
O meu único receio é ainda vir a ficar reduzido, uma destas quintas-feiras, a um qualquer insensato atirador-não-furtivo de geriátricas verborreias, à imagem daquele pantafaçudo peregrino do 44.
Pode ser que não: ser pobre não é o mesmo que ser miserável.
Assim sendo, que nunca me/nos falte a cera.  





Sem comentários:

Canzoada Assaltante