23/05/2013

Rosário Breve n.º 310 - in O RIBATEJO de 23 de Maio de 2013 - www.oribatejo.pt


Madeira

Segunda-feira passada, através de um calor de sufocação, preparava-me para estacionar o carro quando um agente de polícia me sinalizou que o não fizesse ali.
O agente inclinou-se com cortesia à janela direita e explicou-me: “Há um cavalo morto, tem de passar por aqui a máquina para o levar.” Estacionei noutro sítio e fui ver. Era verdade. No terreno baldio onde acaba o bairro social (pintado, com humor, de cor-de-rosa), havia um animal entregue à impenetrabilidade da morte. Era um pónei acabado. Perto dele, um pónei vivo olhava o morto com a mesma humana incompreensão. Talvez fosse irmão dele. Nem eu nem o guarda sabíamos porquê. Se de doença, se de sede, se de quê. Um animal deitado de vez na erva exausta, apenas. Abatido pela inclemência do sol, parecia o que era: um saco de ossos, carne, pele, cabelo – um saco igual àquele em que nos embrulhamos para existir, faça chuva, faça sol. Fazia sol. Jazia todo o sol que há, nessa segunda-feira esbraseada que já não podia punir o cavalito, o cavalito que nenhuma terça-feira torturará mais. O ar vibrava de vidro derretido. O gás da luz cozia as casas como a ovos geométricos. Nenhuma brisa chegava de nenhum mar. A única árvore do sítio dardejava riscos de giz de passaritos de ardósia. O calor era tanto, que a eternidade se tinha tornado um fenómeno local. A marca da camisa tatuava-se-me sobre o mamilo do coração. Era uma cena triste. Por um momento, desejei que não fosse verdade, que o polícia e a realidade e o sol se tivessem enganado, que aquele vulto jacente não fosse um pónei morto mas, afinal e tão-só, um cavalito de pau ali abandonado à condição de madeira sem magia dos carrosséis desmantelados. Que ainda fosse, enfim, uma brincadeira de crianças. Mas era o que era. E o que era, era triste e ao sol. “Os animais são como nós”, disse eu ao polícia, só para que, dizendo alguma coisa, alguma coisa nos desse a ilusão de ser possível sobreviver ao calor e à tristeza e ao pónei. Ele concordou com um menear de cabeça. A verdade é que não havia nada a dizer. A máquina falaria, arquejando de gasóleo na remoção do corpo. Não fiquei para assistir a essas exéquias mecânicas. Ao fim do dia, quando a noite me concedeu o cessar-fogo, voltei ao carro. Antes de meter a chave, decidi regressar ao baldio. Nenhum pónei, vivo ou morto, por ali siderava na sufocação fátua da lua de Junho. Regressei a casa pensando no pónei vivo. Já tinha a crónica. A crónica que é, afinal, sobre ele. Resume-se a isto: é nos vivos que devemos pensar. Póneis ou não, irmãos ou não, é nos vivos. A eles devemos a sombra em plena canícula, a água no cálido deserto, o soro em hora de veia aberta, a palavra quando o óxido da indiferença (n)os arrepanha de ferrugem. Os mortos cantam, mas os vivos contam. Caso contrário, a vida torna-se tão improvável como um lugar de estacionamento num carrossel de vivos cavalitos de osso, carne, pele, cabelo, madeira.

1 comentário:

Malena disse...

Dói, a morte... Estive a velar alguém há poucos dias. Sei.

É sempre muito bom ler-te, Daniel! :)

Canzoada Assaltante