26/03/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 23 (fragmento 1)




23. EPIFANIAS E RENÚNCIAS – ou ERA UMA VEZ UM CÃO

Leiria, quarta-feira, 14 de Setembro de 2011

As sedas tornam vaporosas as mulheres ao calor sem clemência de Setembro. Delas (sedas e mulheres), a bondade física mana perfume óptico. Sou feliz vendo-as que passam trotando destinos de rumorosos rumos.
Acolhe-se o artista a uma tenda de vidros na Baixa Antiga do Burgo a que o devolveu a vida andarilha. Estou a ser feliz devagar, penso o menos possível. Ontem à noite, partilhei música e corpo. Toco hoje as estremaduras sempre renovadas do nosso idioma, que ao lado duas pessoas praticam sem metafísica nem chocolates, engenheiro Álvaro.
Uma rapariga bem brunida pelo Sol lacador, de blusa justa como uma sentença ajustada, derrama sobre os ombros mesmos uma cascata de ouro: e usa o mundo mercê de olhos castanhos onde o hidromel pensa pupilamente.
Depois, há homens: não já Francis Bacon & George Dyer, mas corpos entregadores de mercadorias que à tarde estremunham fadigas de mercado abastecedor. Este, de camisola de algodão muito rubra, surge em flama activa. Trabalha para uma cervejeira que muito aprecio. Aquele, de garruço azul à pescador-de-pérolas, toca, falando, a harmónica grisalha do bigode, a que a espuma da spébòque empresta neve.
De modo que tudo isto é maravilhoso. Sei que a maravilha está no idioma, mas não custa disfarçar que é no mundo. A camisa que veste o homem da sopa-dos-pobres é a mesma de ontem. O casal entrado agora dá substância à fascinante união dos antípodas e dos antílopes: como no-la exerceram antes, exercemos ora nós a gentil e estremecida pecuária da procriação.
Vou ao reservado e urino em plena solidão fisiológica. Ao espelho do lavatório, um gajo de quase cinquenta anos olha o menino que fui. É quarta-feira na minha vida.
 

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Canzoada Assaltante