05/12/2008

Filmes para Ler


© Helen Levitt – Wise Guy ( New York, 1945)

Casa, Souto, 4 e 5 de Dezembro de 2008 (0. e 1.)
Caramulo, noite de 17 de Janeiro de 2008 (2.)





DIZ O QUE VAI SER ESPECTADOR.0

A meia esquerda está rota num dos dedos pequenos,
a direita também mas menos,
é bom chegar a esta idade com os dentes avariados,
ter tido amantes em serões tresloucados
que hoje povoam as salas de espera do desengano dos médicos,
pensar no casamento da metadona com a beladona
e noutras rimas sem graça nem remédio,
ter sempre a escapatória da colecção de anarquistas anos 60
da Moraes Editores,
respirar a trinta por cento pela pomes pulmonar,
atirar da varanda de trás cascas de laranja ao galo vermelho
dos velhotes vizinhos,
pôr música a tocar e não a ouvir,
por minutos de 2008 viver segundos eternos de 1945,
estar vivo nesse lance que a fotógrafa não deixou
se estilhaçasse,
aumentar os espelhos com os rostos outros do próprio,
medir camadas geológicas de tempo num olhar contador,
vulcaniza-se o rasto nos soalhos de macadame da passagem,
é bom chegar a uma idade e ter a idade à espera na chegada
como uma pessoa amiga no terminal viário,
outras pessoas terão corrido menos, outras mais,
de corridas em círculo vêm os portugais,
New York 1945, Peniche 1986, Figueira da Foz 1970,
amanhã será dezembro na mesma de um qualquer ano
numa vida qualquer, esta por enquanto pode ser,
desde que haja filmes para ler.



FILME.1

Duas pessoas em turismo no inverno.
Não se conheciam antes da coincidência no comboio.
Agora viajam juntas, não há sexualidade entre elas.
Têm idades muito separadas, mas procuram o mesmo:
poder não voltar – ou então, poder não ter partido.
Uma delas usa gabardine nacarada, sobe a gola à boca para que o vento junto ao lago lhe não corte tanto até as frases não ditas.
A outra pessoa tem chapéu, que é escuro e duro e pensativo.
Mais de vinte anos entre os dois nascimentos.
Não tanto separará os dois passamentos.
A pessoa mais velha garante que os gatos sofrem de depressão
pluvial.
A mais nova acredita nisso, que já reparou no olhar deles
às janelas, mas nada diz.
Ambas filmadas de costas, ambas a uma janela alta.
Dá cada olhar para um campo de neve coroado por um lago.
Veados rápidos e gigantescos como cavalos, árvores negras.
Uma das pessoas fala de um sável que devolveu à água.
A outra ouve a palavra “sável” e percebe “saudável”, mas nada diz.
Isto sabe-se depois pelos diálogos, que são poucos.



FILME.2

Duas noites antes desta, comecei vendo um homem que vou
conhecer quando o for dando por escrito.
Imaginou-se-me já a breve casa dele: saleta, banheiro, quarto,
nenhuma cozinha, o tudo em chão de castanho e paredes iguais ao chão.
Come em restaurantes baratos, conforme os dias e as noites.
Vive naturalmente sozinho.
Desconheço-lhe quase tudo: a profissão, o nome, o desejo mais fundo, o carácter (mineral ou vegetal ou animal?) da tristeza.
É de olhos cinzentos quando chove ou se muda o mundo.
Azuis, se floresce a grande rosa amarela do Sol.
O apartamento dele é uma sobreloja entalada entre a senhoria da loja e um sótão fechado para sempre.
Escadas de madeira torcem uma curva do rés-do-chão à porta dele.
Tudo range: degraus e porta e ele.
Há duas noites que me habituo a esse ranger.
No filme, terei de ser eu a falar.
Não lhe conhecerei a voz, disso estou já seguro.
É um homem de que só se conhece o dito pelo feito, não o contrário – e o contrário é o de quase toda a gente.
Digo: quase toda a gente que conheço e que não escrevo.
Digo: sinto alguma alegria; a visão deste (o filme com este) homem, nocturna de origem embora, dá-me alguma alegria.
Por mais irracional que uma alegria seja (dada a vida), não deixa nunca, a alegria, qualquer alegria, de ter, pelo menos, uma razão.
A razão desta é esta: é certo que me arranjei uma companhia.
Não quero dizer que este homem seja meu companheiro, ou eu dele, ou um do outro.
Quero dizer que posso assistir a ele.
Sim, como se ele fosse o ponteiro decisivo de um relógio (mas qual, o da hora, o do minuto ou o do segundo?), ou melhor, como se ele fosse a personagem de um filme sem actor nem de carne nem de osso nem de carreira.
Há duas noites antes desta, ele imaginou-se-me.
Isto é a verdade tal como a posso e possuo, de verdade.
Tinha-me deitado depois de um cigarro indiferente que fumei à varanda.
Não era meia-noite ainda, era bem menos que essa hora lunar, esse limbo de bruxas de chácara, de gândara, de charneca, de granja.
Fumei o cigarro e recolhi-me à imitação do esquife.
Folheei uma revista de maquinaria agrícola, bebi água riscada de sumo de limão, desliguei a luz e esperei.

Falo: de quando ele imaginou que me aparecia.
Duas noites antes desta, ele apareceu em sua sobreloja exígua, uma saleta sem cozinha, um quarto, um banheiro quase inclinado de tão estreito.
Vi-o de dentro da minha noite, a que chamo minha porque lhe pertenço.
Vi-o sentado no centro da saleta.
Só há uma cadeira e só há uma mesa na saleta.
A cadeira é um cubo mutilado.
A mesa é redonda, tem uma terrina com motivos róseos de boa catadura.
A terrina é um falso século-XVIII: falsa como o século e falsa como a contagem dos séculos – no resto, verdadeira, como todo o objecto que não precisa de ser visto para seguir sendo.
Vi-o sentado na cadeira que incompleta a mesa no centro da saleta. Eu quis que ele tivesse entremãos uma revista de maquinaria agrícola: nesse caso, seria ele um sonho de outro eu, o que melhor seria, pois se sonhamos connosco sonhamo-nos para nos esquecermos de todo de acordar.
Mas ele não lia essa revista, que me pertence desde que o meu Pai se dissipou no jardim de mármore.
Vi-o que não lia nada.
Estava ali sentado, aqui sentado na minha vigília, duas noites antes desta.

Uma casa, um homem, outro homem, outra casa.
Mais ou menos o outro, o mesmo.
Vendo chover, o Sol recebendo nos olhos: é o mesmo?
Numa cadeira, a uma mesa, uma noite.
Com leitura, sem nada para ler, sons vivos que de baixo fazem tremer os pés até ao coração, um pouco também o coração, um dos corações que este mundo conserva em saletas, defuntos sons que de cima fazem tremer as pálpebras até ao coração, na saleta como na cama, quase sempre de noite.
Há a noite mineral, há a noite vegetal, há a noite animal.
Veados, neve, um lago.
Só a alba escapa a qualquer destes reinos, por dela mesma ser reino e rainha, que não deste mundo.
Outro mundo o mesmo, entre imagens e gatos repetidos em fêmeas, odiando o fumo e a novidade e o chão de madeira sem tapetes de que urdir a fiação das unhas.
Tudo isto – e a presença do sótão dentro da cabeça, os sons de baixo subindo como um fumo de cigarro à varanda que o vento quebra antes que o fumador perceba a espiral das constelações, ou enigma dos anéis-sete-escravas, ou a raiz de um verso incontinuado.
Ou incontínuo.
Ou incontinente.

Cansam-se os olhos castanhos (pretos, quando chove ou se nubla o mundo) postos na mesa, na maquinaria que preside às mesas, aos cubos incompletos e às saletas, além de a tudo o mais.
Ou menos.
Ou aqueles outros mundos a outros olhos: os mesmos, uns e outros,
como os comboios e os dedos pequenos.

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Canzoada Assaltante