09/11/2007

Herbário de António, o Santareno


Hoje, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt), esta homenagem a um dos maiores escritores de sempre da Língua Portuguesa.
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No Verão de 1996, tive nas mãos o herbário juvenil de António Martinho do Rosário, depois (e espero, apesar de tudo, que para o maior sempre possível) conhecido por Bernardo Santareno, o grande dramaturgo de ‘O Judeu’, ‘O Crime de Aldeia Velha’, “António Marinheiro” e de “Português, Escritor, 45 Anos de Idade”, entre tantas outras obras de lugar cativo na nossa tão rica como amnésica portugalidade.
Estagiava eu então na RDP/Antena 2, onde, a troco de estar calado, fui remunerado com a riqueza de ouvir e ver coisas e pessoas de outra dimensão que não apenas esta nossa merceeira condição de sobreviventes a prazo e a malefício de inventário. O herbário de António (não ainda Bernardo) é o que um herbário antigo tem de ser: uma antologia de folhas e flores coladas de costas ao papel do Tempo, esse impiedoso combustível. Enterneceu-me poder manusear um objecto criado pelas mãos do grande escritor quando moço. Por assim dizer, revisitei, pela mão dele, o tempo dele: as flores dele, as folhas dele, a botânica juvenilidade dele. Depois foram, para ele, os anos de Lisboa: médico psiquiatra, escritor de teatro, homossexual discreto, sombra solitária, portador de óculos de espessos aros, gravata decente, perpétuo cigarro ao canto da boca, sentido atento às vozes de dentro que, soltas dele, se tornavam, fora dele, corpos de actores. Os tablados dramáticos encheram-se dessas vozes, dessas vozes por assim dizer herbárias: borboletas vegetais alfinetadas pela revisitação das nossas História, Língua, Pátria, Moralidade, Sensualidade, Criação, Alma, Hipocrisia, Solidariedade, Tragédia; e dos nossos Drama, Desamparo, Confronto, Cérebro, Vazio, Frio, Fado, Exílio, Silêncio e Desconhecimento. É justo que pouco ou nada disto vos interesse grande ou mínima coisa. É justo que sejamos diferentes, a começar pelos interesses. Esse é, aliás, um dos ganhos a obter da leitura da obra de Bernardo Santareno, esse senhor de quem alguns manuscritos andam perdidos por obra e desgraça da má hora em que deles tornou herdeiro um rapazelho de duvidosa honra e proxenética condição: a justiça da diferença contra a injustiça que toda a indiferença é. Eu sei: o Povo (essa entidade concretamente humana que vive numa abstracção animal) não vai ao teatro, não gosta de pensar nem de se repensar, prefere mostrar as cáries no desbragamento da gargalhada, gosta mais de broa. Três décadas apenas depois do 25 de Abril, não estamos melhores por aí além. Não sabemos mais, não conhecemos mais nem minimamente nos reconhecemos: como Povo. Queremos ser da Europa sem saber ao certo onde é que isso fica. Deve ser ao pé da Turquia. Temos liberdade de expressão, é certo, mas não sabemos exprimir-nos. Votamos massivamente na Abstenção, desconfiados de que, seja quem for que lá ponhamos, é para nos roubar. E nem sabemos quem foi e o que fez Bernardo Santareno. Posso dar uma ajuda.
Era António. Juntou flores em pequeno.

3 comentários:

Manuel da Mata disse...

Agradeço comovidamente o "post" sobre e com a fotografia do Bernardo Santareno.
Li-o todinho, em Paris, requisitado no Centro Cultural Português da Avenue Iéna (Gulbenkian). É-me difícil escolher uma peça do Santareno.
Talvez o "António Marinheiro", porque se trata de reescrever, em português, um mito clássico. Ou "O Judeu". Ou O Crime de Aldeia Velha".
Agradeço o teres-te lembrado do Santareno, que foi o mais profícuo de todos os dramaturgos portugueses dos últimos quatro séculos.
Estive com ele no Teatro de Carnide poucos dias antes de morrer, durante a representação de "António Marinheiro". E fui, de lágrima no olho, deixá-lo, num fim de tarde, no Alto de S. João. Com outros portugueses. Éramos muitos muitos mil, como diria um outro poeta esquecido.
Portugal não merece muitos dos seus filhos. E esquece-os como se se tratasse de uma primeira camisa.

Daniel Abrunheiro disse...

Comovidamente também te agradeço a tua humana, e tão portuguesa, atenção, Manel.

LM,paris disse...

Bonsoir, Portugal esquece os filhos,e as filhas?
Nao me contenho...é sempre o meu lado provocatrice qui revient!
Ninguém tem saudades da Natércia, da judite de carvalho?
Da Sarah Afonso, ou da Vieira?
Eu tenho, nao conheci todas, li-as, encontrei a Helena Vieira da Silva, foi ao bar da Natércia vàrias vezes, e bebi alguns copos com o Bernardo santareno, para os lados do Maria Matos, com o grupo 4 , era amiga deles, em miuda...tinha dezoito anos, acho...havia também o Urbano e as miudas,lembro-me especialmente do Santareno. Nao levem a mal o meu comentàrio, até é dificil ir buscar nomes de mulheres para relembrar...serà?
Ninguém ajuda à festa?
Se nao fosse a Sophia ainda estavamos todas a fazer ovos moles na cozinha, agradecidas de nos terem oferecido o tal prato:
" Em casa manda ela! ".
Vocês vao ajudar-me a encontrar os nomes para relembrar, sabem mais disto que eu, j'ai confiance en vous.
A palavra sororidade terà so conotaçao religiosa, ou estarà em igualdade em relaçao ao mundo, como a fraternidade?
De um ponto de vista linguistico, pergunto eu.
Acho bonito ele ter feito um Herbanario, c'est très sensible,
je comprends l'émotion de Daniel.
Beijos, nao durmo, il fait trop froid, trois degrés..., bonne nuit et presque bonjour!
lidia.

Canzoada Assaltante