05/10/2007

Evidências Repetentes



Dois olhos quanto basta são
para de todos os rostos construção.

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Entre ontem e amanhã voltam-me as palavras de
nascer e morrer.
Nelas discorra, e delas, a vida mesma –
à existência anterior e a ela seguinte.
Portanto, única.

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Escrevo para comungar o silêncio.

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A idade, esse lego de patamares.
Pátios como o futuro traseiros,
quintais de primeiras sexualidades,
jogos muito solitários, felizes.

Em meu presente outono, ainda, e porém,
a doçura cega de cegarregas e açucenas,
o vapor da comida da Mãe,
a humana mendicidade dos gatos no cimento.

Todo o depois se tornou antes de tudo.
Agora é este reconhecimento que não conhece:
sequer a novidade cartonada das grisas tardes,
quando, marsupial, o dia embolsa no ventre

a noite, tal frio peluche de estrelas e automóveis.

Tornam-se os anos ondes:
interdita geografia, que aos passados
se não volta, pois se não volta
aonde de onde se não saiu.

A idade etc.

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Outras vezes
em uma tarde de repente
é tudo entre
morrer e nascer.

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Entre.

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Ouço água correndo no escuro.
Não estou em casa.
Não estou na rua.
Não é de noite.
É um verso.

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Toda a vida humanamente se desconhece
a evidência repetente da eternidade:
as vozes dos animais – mesmo poema
em sucessivos diferentes volumes.

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Nada creio e pouco crio:
pouco e nada.

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Estou seguro no amor de tijolos
de que fui, pedra a pedra, erigido.

Rúem as casas e os amores.
Não o amor, essa construtora
ruína.

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Já saí e não fui.

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Pega num homem e fá-lo dizer
que sabe esse homem pegado.

Se
como eu
for ele
saberá isto:

uma bandeira inútil num barco
o carácter frutívoro do vento
o carácter piscívoro da árvore ao vento
a solidão individual de todo o barco.

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Acontece
hoje aconteceu-me
ao microfone da rádio
fazer apelo
dia 7 de Outubro
em Tondela
entre as 9 da manhã e a 1 da tarde
recolha de sangue
para compatibilidade de medula
o menino leucémico é de 11 anos
quantos anos vai ter o menino
quantos vai o menino acontecer.

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Dois olhos usei durante a barba
reconstruí os escombros deste olhar
que me preside às coisas sociais
os dentes entraram na liça
das orelhas tufos atiraram a idade capilosa
e a boca sabia que ia escrever à mão depois

agora.

Caramulo, tarde e noite de 4 de Outubro de 2007
(à excepção dos dois primeiros versos: entardenoitecer de 3)

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Canzoada Assaltante