15/09/2007

A Noite em Breve - 10 e 11

A Noite em Breve
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)
10
Caramulo, entardenoitecer de 22 de Agosto de 2007


Vejo uma rapariga de cantos da boca soldados a preto pela amargura. Vejo-a agora, ao fim do meu dia, início da noite dela: tisnada corporação feminina, alquebrada tonsura oftálmica, a pele estragada pela usura de piças sem amor. Vejo-a agora – e é outra vez como quando dá o vento nos castanheiros: não sei (d)escrever.
Ainda bem que não sei – pode (tudo pode) ser tão injusto –, pode a rapariga provir de pai alcoólico e seguir para a lista de espera da única ciência partilhada por ricos & pobres: a Quimioterapia – e aquilo dos cantos da boca ser amargura, sim, mas com princípio activo também, como nas posologias e nos efeitos secundários.
Oh e ai, que eu não sei. Escrevo para desconhecer – a partir da relativa tranquilidade que emerge de ter-desconhecido-mas-ter-escrito-qualquer-coisita-para-disfarçar.
O vento da minha terra nos castanheiros da minha terra. Uma sombra de vento numa terra alheia: my life. Trabalhamos tantos para ser ninguém – esse ovo de gás alimentando as velas dos aniversários, esse gás para a explosão da adolescência, a senil puberdade de tudo o que não cumprimos por excesso de promessa. Também isso não sei. Sei a noite em breve – é a minha ametista privada, nada a ver com a vossa, que tudo sabeis, vós – sabeis a noite em breve – a vossa.
Acho ter repetido:


Um dia a minha vida será uma sombra numa frase alheia.


É uma automitigada candura, usura de falsíssimas repetições: de versos (ou frases) e da memória. Quereis ver? Ide não por mim, mas pelo que vos puder dar a encantatória (e surda) serpente do flautista:


Rapariga de soldada boca ao canto da amargura.
Usura de casados, a concerto de bar
by night.
Coração sujeito a
very-light, na pouca loucura
da procura de um lar que iça piça e cai-te,

sinceramente, mal. Sabem-se os tratos cedo
ou tarde todos na avenida – e os cafés, em
torno mentem-comentam (vento-folhedo)
alegorias (não alegrias) de pai & mãe.

Preciso é ter fé num arranjinho. Um dia pode
aparecer um carragasóleo, noite com lua,
algum sozinho que trouxer a si-mesma-diferença.

Pode e não pode: primeiro é saber se fode.
Se não no fizer, mais sorte a sua:
que o mal semelha bem à luz da rua.


Digo: sonetos destes são absolutamente perdoáveis num país como o nosso. Estupefacção e estupefacientes nunca andaram longe de sós e de netos. É perdoar e andar, que a gasolina é azul e tem marcamericana. Sabe-me a meninos incréus, cada dígito octanado em estação de serviço servido por estacionários adolescentes sem décimo-ano nem futuro.
Carlos e Ângela saem, oferecem jantar a Adrien Roig, o senhor que traduz para francês Uma Abelha na Chuva. Depois voltam, como foram René E Georgette Magritte com o cão deles no pós-guerra. Isto acontece – já aconteceu –, isto acontecerá.
Também pode ser. Eu acho que tudo pode, também, ser. Ele há caracóis. Os casados cansados procuram tardinhas servidas a pires. Os dias são difíceis, as tardinhas compensam. Um folheto de salsa sobre recortado pavilhão auricular de porcino. Um vinho para os maduros, uma imperial para os efervescentes. As estações do ano, as vidas tributárias, a regionalização, os/as que fazem filhos/as contra a morte hereditária que tão depressa se herda como devagar é uma merda. Pronto.
Ou (digo sempre ou quando me falta alternativa) o vento nas tílias, alguns cem metros acima dos castanheiros: que de nós diferiremos, esta noite, entre cetins sem seda e sedes sem água? Que mais oclusões sinápticas ocorrerão a nosso peregrino agnosticismo? Prevejo homens velhos (todos o Pai) sentados em pedra, silhuetas-Y de raio-X contra parede de cal, num repetido alentejo antárctico – a cabra da memória numa avenida perto de si, não longe uma gare rodoviária, coruscando pirilampos erécteis os carritos dos pobresomens.

11
Caramulo, entardenoitecer de 23 de Agosto de 2007


E agora versos de 11 de Agosto de 2007, pela tarde:


Na mui pura natureza de tua graça
na mui grácil natura de tua pureza:
e na mui graciosa puridade de tua natureza.

Na hora nem sempre boa de tua bondade
na nem sempre boa idade de tua hora.


E agora siga. Ainda olho tudo como se tudo fosse um cinema: azuis muito pessoais, rostos ampliados, ditos amplificados (com legendas e tudo) – tudo sentado numa poltrona numerada, entre gente também anónima e contribuinte também. Este assentamento dentro, ainda – eu vivo de aindas, sobrevivo de enquantos, morrerei de por-conseguintes. Está bem, é certo, está correcto. Interessa-me Philippe Ariés, o homem do armazém de bananas que aprendeu História sozinho. Louis Althusser, que maluqueceu a ponto de estrangular a mulher, também me interessa. Georges Duby é um escritor invencível, lírio branco, explicativo, carteiro de mundos medievos, toupeira de humanas equivalências multisseculares. E Alexandre Herculano comendo peras e queijo numa choupana de pastores, em 1852, numa volta pela monumental documentação que ilibou Cristo da Batalha de Ourique – ou o carago, não sei, escrevo como vivo – de cor.
Em tardinhas assim, anoiteço eu enquanto se me amanhece a memória. O tradutor português de Joyce, Palma-Ferreira, décadassetentava portuguesas tristezas madrileñas. Lá com ele (RTP por fora). Mais aquele caraças sem nome que se socorreu do Luiz Pacheco para traduzir Voltaire – e levou (e bem) com um rodapé a baixar sandes de merda – iluministicamente, caldasdarainhamente, pachecamente. E o Gaspar Simões a viver de si mesmo, que o lípido sempre foi de sustança. Isto tudo mais tudo isto – a figura portuguesíssima do empresário que fez fortuna em Angola contra Angola. Tudo bem. Em caso de massagem localizada, ler O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço. Em caso de cosmopolitismo, aceder a El Laberinto de la Soledad de Octavio Paz. O resto explica-se bem com os encerramentos pecuniário-compulsivos de zonas industriais, a cuja sombra floresceram décadas e décadas de salazarentos ordenados minimínimos que davam para comer mas já não dão.
Pouca poesia, em tudo isto. Coisas que me puseram no berço para carregar até à cova: os holocaustos laborais praticados em massa por gravatremoços obtusos (licenciados em Economia a soldo de um ocidente inalcançável) contra hordas de casais que produziam a bolacha, a ração, a cerveja, a louça sanitária e a de cozinha, a caldeira industrial, o cimento, a carne, a malha têxtil – e só se esqueceram de produzir a puta-que-pariu-os-economistas-a-soldo.


Na mui impura natureza de nossa desgraça
etc.

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Canzoada Assaltante