04/03/2007

ESCADAS do GATO, com CÃO ao CIMO - uma Elegia do Largo da Portagem, Coimbra, e Outros Coisos

“Só aquilo que no fim achamos ridículo é que nós dominamos.”
Thomas Bernhard, Antigos Mestres, pág. 117

Escadas do Gato, com Cão ao Cimo
(uma Elegia do Largo da Portagem, Coimbra)


Um sábado, anoitecendo, estou ao cimo de uma escadaria. Estou a olhar para baixo. Os degraus enegrecem em segundos sucessivos: o tempo desce-os. Nas minhas costas, o largo perde sangue: o sol é uma granada de groselha que já não aquece ninguém.

Posso descer, posso não descer. Ainda sou livre e ridículo: rio-me sozinho e livro-me sozinho.

Tenho dado por mim, na montanha, saudando a cidade. Se eu for à cidade, perco a montanha: como a perdi à outra, vindo para esta.

À esquerda, era o Pinto. À direita, o Correia. Zonas de sombra, ossários, capelas, tabernáculos. Mas também era, à direita como à esquerda, a minha mocidade improvável.

Tenho-me sempre deixado viver. É o meu luxo e o meu lixo. Está correcto, assim.

Fica, por vezes, a boca, grená. E não é do frio.

Não foi então nem fui.

Eu digo metais preciosos e não os possuo. Não em casa. Não nos apetrechos. Dizer é mais que possuí-los, pois que é sê-los.

Recordo sempre para a frente: amanhã não me lembrei.

Estou de frente para baixo: as escadas. Sim, o tempo.

As pessoas, rápidas: demoram tão-só oitenta anos (67, 17, 4, 24, 80).

As pessoas nas minhas costas, cor da groselha.

À minha direita, em frente à loja das máquinas de costura, onde o MRPP fez em 1974 uma vozearia que deu porrada com os comunistas oficiais, um louco manso tenta vender um bilhete da lotaria de Natal de 1973.

À minha esquerda, o Banco de Portugal dá o flanco ao Astória, que dá a cara a Santa Clara-a-Nova, que ainda olha para a Mãe, em baixo, os pés da Velha frígidos de cheias do rio com nome de cão, as sandálias todas sujas de laranjas.

Não é o fim, Jim. É só quase domingo.

Balcão em U, churrasqueira, homens desirmanados. Adivinho-os além, descendo, dando a esquerda. A breve alegria da comida, o rito da ração. Carvão vivo, frango morto: cinzas, brasas.

S. Bartolomeu; a das Cebolas; a Velha (outra); a do Comércio.

De tão ridículos, tão sérios; de tão sérios, tão ridículos – todos os nós e cada eu.

Não me importa: tenho pequeninos amores que duram muito. Gosto da churrasqueira com homens sós comendo o próprio silêncio. Gosto da fusão pombastátua. Gosto da cidade que resiste à cidade nova. O MRPP que resiste a 1975. A loja de máquinas de costura que resiste ao MRPP.

Decisões – a porra das decisões. À esquerda, em frente, atrás, à direita, lembrar, saber, esperar um pouco, escrever depois. Ser depois. Mas não é possível.

Fatos-de-macaco. De facto, macacos: os operários. Cada vez menos na cidade, os operários. A indústria foi toda para Aveiro, Marrocos, Polónia. O União, assim, não sobe.

Nem eu desço, para já.



Outros Coisos

Algum Desgosto (Masculino) Pós-Cirúrgicoplástico

Há hoje mais pessoas mansas,
o que não significa pacificadas.
A menina que tinha trancas,
tem sillymamas implantadas.

Hoje é doutros ontens feitos,
não há nisto novidade.
Mas mamar mamas, que não peitos,
eu não sei – é da idade.

O meu tempo também é este?
Mais aquele, mas enfim.
Os peitos que recebeste
são de ébanoumarfim?

É que podes ser um gajo.
E eu nesse caso não ajo.

Ruante

Não cortam já seus mesmos passos as ruas.
Dizem que não passam mas não sei se não.
Digo: dizem as ruas que não passam mas
basta atentar nos nomes que as nomeiam:
passam e passam.
Passam muito.

Ouvido de Conversa de Café

– Dez pessoas.
– Às seis horas, já lá não estava ninguém.

Caderneta

Pode ser a morte.
Pode ser, a morte.
A morte é.
A morte não pode.
A morte pode.

Solas

Se o teu sapateiro for oficial,
o caminho ainda é remendável.

Escadas

Um pouco mais.
As escadas.

Caramulo, entardenoitecer de 3 de Março de 2007

Sem comentários:

Canzoada Assaltante