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O Corpo de Volta
Depois de tantos anos pendurado da alma ou das árvores, o meu corpo está de volta a mim. Em vão, pelos vistos, o exilei.Sei de vago modo por onde andou e que andou fazendo, mas só agora me dou conta de quanta falta me fez. Podia tê-lo vivido, posto a meu serviço. Não o fiz e, embora não seja tarde de mais, julgo, há coisas que ambos, eu e ele, perdemos sem remédio nem resignação. E se as más vontades julgarem que estou a subdeclarar mulheres, não estarão de todo enganadas. Também, claro que sim, mas não tão-só.Há mais coisas para que um corpo é útil. É preciso para se regressar do mar, por exemplo. Sem corpo à mão, a alma fica lá, lânguida e embrulhada na ondulação como uma alga. A minha questão é parecer-me que este corpo quer levar-me para lá.Um corpo é sempre bom para ir ao mercado sopesar os frutos, auscultar o coração dos morangos e dos melões, unhar o ouro de lei das laranjas, tocar o vidro embaciado do olhar dos peixes, transportar a fome ao tabuleiro da mulher dos bolos, deitar sombra fresca como água aos baldes de flores.Está de volta, agora, o meu corpo. A questão, agora, não é o que vou fazer dele, mas que vai ele fazer de mim.
Não o esperava. Sinceramente: nesta idade, já o não esperava. Tenho-me desenrascado mais ou menos bem sem ele. Antigamente, dava-o ao manifesto. Um dia, talvez uma noite, ele ficou por lá, no manifesto. Eu fiquei no algures de cá, transparente e tributável. Dele, guardei o nome: eu precisava de um, ele nem de mim precisava, quanto mais de um nome. Ainda por cima, de um nome igual ao do meu Pai, senhor que há tantos anos não é corpo.
Agora, tenho de vesti-lo, calçá-lo, coçá-lo, dar-lhe pão e água e laranjas e cafés. Em retorno, ele dá-me pressa para evitar a chuva iminente, unhas para roer, bocejos metafísicos que me marejam de água os olhos e olhos que assento sobre as coisas como uma tinta aquosa.
Está de volta. Deve ter vindo dizer-me que, um destes dias, talvez de noite, estarei eu de partida.
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23/11/2007
O Corpo de Volta
A partir de hoje, 23 de Novembro de 2007, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt), a crónica nº 27 de Rosário Breve.
Oui, je sais,depuis qu'il est parti par la tête,il voyage et parfois il revient chaussé celle que je suis devenue.
ResponderEliminarJe sais.
Lindo texto daniel, e nao sei se é ficçao, mas para uma danseuse andar numa ida e volta de benvinda ao corpo, é quase...natural.
é preciso saber larga_lo para integrar o da dança.
Gostei muito!
Benvindo ao seu entao!
Até breve, enjoy!!!
Have a nice day-day!
parsi com sol e frio!
LM
O meu registo favorito. Delícia pura. Esplendor aqui nesta minha relva. Roo-me todo de "sastifação". Preocupa-me, porém, este regresso. Mau...
ResponderEliminargrande texto, daniel.
ResponderEliminarUm abraço,
Luís
Uma noite destas passou uma estrela cadente, fez uma viagem incrível, de norte a sul do céu negro. Pedi-lhe que me levasse com ela, mas não o fez. Pensei, que se assim é, é porque aqui tenho que ficar. O mmo se passa com o teu regresso, ou dele, é porque tem que regressar. Viver consiste em casar-vos de novo...
ResponderEliminarJanete Gameiro
Brilhante Daniel. Único Daniel.
ResponderEliminarAinda bem que o seu corpo o encontrou. Melhor ainda que tenha decidido tomar bem conta dele. Fique com ele.
Brilhante Daniel. Único Daniel.
ResponderEliminarAinda bem que o seu corpo o encontrou e melhor ainda que tenha decidido tomar bem conta dele. Fique com ele.