Detalhada circunstância tenho dado
de uma vida tão co’a minha parecida,
que nem parece, a própria vida,
passar de si mesma ao lado.
Talvez eu ainda viva muito, talvez
um dia eu viva outra vez.
2
O meu Pai colheu para mim uma maçã silvestre.
A maçã trazia o cheiro da mão dele.
Às vezes levanto a minha mão à cara:
e ele vive outra vez, eu juro que vive.
3
Tu es parti.
Tu es partout.
4
My life shall never fail
but me.
5
Eu vi a pureza em um antro sórdido.
Cascas vegetais e plásticas juncavam o chão.
Disponho d’um coração seguramente já ido
mas disponho de um coração.
Beijo muito a minha gata, que se rebela.
Estendo na sala um augúrio horizontal.
Perguntam-me p’la vida, ‘tão como vai ela.
Digo desandando que vai menos mal.
Eu vi muitas coisas, algumas das quais
morreram na praia, a qual fervia
de vidas e mortes sempre tão ‘sponsais,
que amavam à noite o ódio do dia.
Eu agora não sei, eu digo “eu agora”.
Lisboa é j’ali, mais acim’a Europa.
Já fui homem verde quand’andei na tropa.
Ai logo qu’eu pude, vim-m’eu logo embora.
Decerto fiz mal, que hoj’eu podia
ser l’até quiçá capitão.
Mas morri na praia, a tal que fervia
tão sórdid’e pura com’um coração.
6
Mais teimos’é o amor do que o amante.
Existe e persiste contr’a reforma fiscal.
Os cornos insistem marrar adiante.
E o rabo compulsa a caca final.
7
Mas de vida falávamos, não era tal assim?
De viva vivida por ti e por mim.
Coisas de comboios, empregos, desditas.
Horas graciosas de rosas aflitas.
Possa quem puder, sej’om’ou mulher.
Possa quem de si ter carga de pranto.
Eu nasci de dia mas a noit’entretanto
faz d’um homem noite, dia se quiser.
8
Na noite fechada de cada um si mesmo,
luzitas pipilam o longo corredor.
Palpitam as leis, instituem a esmo
o que já se sabia por ódi’amor.
Um hom’é um homem. Mulher é bem mais.
É mãe e, viúva, legisla por pais.
9
Quanto quer a vida airosa
cobrar juros ao futuro?
Tira pétal’à tu’ rosa.
Espinho fura fino e duro.
10
O meu Pai fez uma vez cinquenta anos.
Eu olhei para ele sem me aperceber da
tempestade que aí vinha.
Todo o Pai é uma vitivinicultura:
homens e mulheres trabalham para colhê-lo.
As mãos do meu Pai cheiravam a
maçãs de vinho dourado.
Dourado e silvestre.
Eu às vezes levo a mão à cara e
digo: o meu Pai é um sítio onde
estive.
E ele vive outra vez, eu juro que vive.
Caramulo, tarde de 10 de Outubro de 2006
Só posso dizer que achei sublime! Beijos.
ResponderEliminarJá se torna uma obsessão espiritual passar por aqui.
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