O meu Pai contou-me histórias e lances que me ficaram. Ouvindo-o, eu vivia a inequívoca suspensão dos leitores, que viria a repetir depois nos livros de papel por que me vi forçado a trocá-lo.
Das narrativas que me passou, não conservo senão a atmosfera escura dos homens (quase sempre ou operários ou homens de génio), a tristeza palpável das florestas com seus caminhos de criança, o carácter inapelável da chuva e um vago terror pela morte que não pude ainda confirmar pessoalmente. Quanto aos lances e às histórias propriamente ditas, quase nada posso aproveitar para nutrição do meu ofício. Ficaram-me a escuridão, a tristeza e o gosto por estas duas irmãs da imaginação. Quase nada?
O meu Pai está morto. Já não conta. Nestes doze anos sem ele, venho babujando os meus mesmos homens e as florestas improváveis que se erigem ao descer do sono, na cama que ele já não aborda para verificar a respiração do infante. Aceitei e cresci, velejando a lápis pela memória prospectiva e pela absoluta insensatez da poesia. É verdade que navego confusamente. Acontece-me escrever um homem, pensando-o meu, e ser ele, afinal, dele. É uma sombra de sombra. Isso faz-me sorrir. Sim, faz-me sorrir como um maluco sozinho de café. Não tenho problemas com isso. A cabeça de um homem é uma rosa de vidro duro. Cortando a cara, está a boca, território do dentista e da palavra. Escrevo estas coisas contra a claridade e, não raro, contra a alegria.
Porque a alegria seria poder não escrever. Não criar mais homens do que os já existentes, não mais rosas de duro vidro. Eu agora conto histórias e lances, sem filho embora. Da cama, vejo e ouço o ramo de árvore raspando o vidro: o ramo na minha cabeça. Todas as noites me são uma, daí que a minha felicidade seja um sistema feroz e totalitário. Pode o rolo dos meses ser tão compressor quanto lhe é natural: é uma noite só, só. Isto está correcto, assim.
De quando em quando, é de dia. Então, barbeio-me, visto um fato decente e saio para a rua a cheirar a sabão. É o mesmo domingo de sempre, claro. Farmácias fechadas, igrejas abertas, o rio pulsando a veia aberta de cobalto, o fumo da manhã, as pombas como cães rasteiros esburgando ossos de milho, mais a placidez acrítica do bêbado matinal ao fundo do beco. Saibam então que, então, me toma a feliz ferocidade de lhe ter sobrevivido. É provável que esta manhã ocorra de noite (o ramo no vidro). Não tem mal. Toda a gente é tão matinal quanto pode.
Os homens do meu Pai eram todos noctâmbulos. Também assim os lances deles. As estradas eram de terra, quando nelas chovia jorravam horizontais regueiros de café-com-leite, o pão era amargo, os filhos eram feitos num estremeção; e estava sempre a chover café-com-leite. Pouca diferença para comigo. Conheço isso, volto a ser feliz por causa disso. É o meu trabalho.
Hei-de levar-vos pela mão a este homem (não há engano, este é meu) de bom relógio de pulso, fraco colete de lã e orelhas entupidas de torrões de cera. Está ali, contemporâneo da minha mão direita. Usa um bigode tão denso e expressivo como um terceiro olho na mesma cara. Mãos cartilaginosas de comedor de canja, calças de fazenda preta; cotovelos de afiadeira, costas insignificantes, cinto de cabedal espúrio. Tem cinquenta e seis anos: e nasceu agora. Hei-de vê-lo a beijar um cálice de licor.
– Dona Judite, um cálice de licor.
Já está. Bebe à esquerda como um decifrador de palavras cruzadas. Sapatos de feira dormem-lhe aos pés como gatos de napa. Os joanetes embolam os gatos. Não tenho o meu Pai, tenho este homem.
Receio que me não acreditem, mas isto é a felicidade, mesmo que os traços sugiram a mesma tristeza e o mesmo domingo e a mesma floresta e o mesmo lápis. Alegria e felicidade nunca foram a mesma coisa: nunca foram a mesma pomba.
Fiz já algum amor, alguma comida, alguns livros e alguma sombra. Perto do meu coração físico, demora-se às estrelas o espectro da Pensão Central, abandonada e olheirenta. Entrei já, clandestino, nessa casa final. Terrinas de sopa branquejam ainda nas bancadas apodrecidas; penicos albergam ratos mortos de sede; um quadro vesgo recorda que há cabanas na neve, mas não para ti; sobrancelhas de arbustos vivos rompem pelas frinchas dos madeiramentos; e os mortos pensionistas reclamam chá de dentro das décadas estagnadas. Mas, dizia, fiz já algum amor (algum chá, também); e alguma comida, peixes salgados que deitei a assar sobre carvões rubros caramelizando a areia da praia; e alguns livros, onde se tornou inequívoca a impossibilidade de fugir; e alguma sombra, esse trapo que a luz deita a si mesma para não ferir os olhos.
– Dona Judite, um cálice de licor.
Os homens escurecidos do meu Pai correm os valados de Alcobaça, atormentados pelo ar frutívoro e pela música da água do mar da Nazaré, espermática na noite preta, reboadora, catedrálica, desumana. Eu não corro. Eu estou. Eu agora estou vivo. Isto é importante – porque me faltam muitas páginas.
Domingo de manhã, cruzei (cruzarei) a Praça das Cebolas, acossado pela repetição e mirado do limbo pelos cães dos toxicodependentes. Cheirei (vou cheirar) o vinagre das sardinhas fritas na viela por uma mulher de varizes cuneiformes, picardia aromática repercutindo por ondas na minha pátina de sabão. Ao fundo, a igreja de S. Bartolomeu, nesgada de sol e anemia. Além dela, a margem direita do rio, ao longo da qual tiracolam os pederastas suas tesões estéreis.
Só devo ter cuidado com o domingo por causa de o meu Pai reviver. Não se trata de uma intercessão de S. Bartolomeu, mas minha. Concorro a esse milagre sem querer, nem crer. Ele acontece, apenas. Algumas vielas foram iluminadas por ele, antes da rifa vascular-cerebral do fim. Ele cheirava a sabão, tinha raspado o queixo e surgia envolto num fato quase tão decente quão pobre. Sentia o vinagre das sardinhas, silvava melopeias às pombas, não havia drogados ainda, só cães, os mesmos. Ele não tinha estremecido ainda para fazer-me. Vem no meu sentido inverso: em verso. Já viu o rio, agora regressa, rumando aos Sapateiros, depois da camisaria. Não trocamos palavra. Isso é que já não pode ser.
A praça enche-se de homens, lances. A praça escurece. Há uma vozearia gráfica, como nos sonhos e na banda desenhada. O domingo excita estes homens carbónicos. A tristeza do meu Pai é tão evidente como uma toalha posta a enxugar à chuva. Descuidada, a memória alimenta-se de si mesma como o vento, que aliás sobressalta os cães e a placa de madeira do camiseiro. Percebo que isto é de estar a chover sem eu ter dado conta. Dentro da cabeça, a cronologia é meteorológica. Estou descalço: ele leva os meus sapatos. Se estou descalço, deito-me (o ramo no vidro). O domingo esvai-se.
– Dona Judite, um cálice de licor.
É de noite. Além da Pensão Central, a montanha desce-se a si mesma como uma história, ou uma vida, ou uma montanha. Estou vivo na antemão de tudo o que vem ainda. Há uma teimosia, nisto de as coisas seguirem vindo, que só pode ser galáctica. Luzitas eléctricas caspam, por todo o vale, o cabelo da noite: pequeninas vidas sem livros nem redenção, dentro das casitas, dos galinheirozitos, dos camiõezitos, da noite.
Das narrativas que me passou, não conservo senão a atmosfera escura dos homens (quase sempre ou operários ou homens de génio), a tristeza palpável das florestas com seus caminhos de criança, o carácter inapelável da chuva e um vago terror pela morte que não pude ainda confirmar pessoalmente. Quanto aos lances e às histórias propriamente ditas, quase nada posso aproveitar para nutrição do meu ofício. Ficaram-me a escuridão, a tristeza e o gosto por estas duas irmãs da imaginação. Quase nada?
O meu Pai está morto. Já não conta. Nestes doze anos sem ele, venho babujando os meus mesmos homens e as florestas improváveis que se erigem ao descer do sono, na cama que ele já não aborda para verificar a respiração do infante. Aceitei e cresci, velejando a lápis pela memória prospectiva e pela absoluta insensatez da poesia. É verdade que navego confusamente. Acontece-me escrever um homem, pensando-o meu, e ser ele, afinal, dele. É uma sombra de sombra. Isso faz-me sorrir. Sim, faz-me sorrir como um maluco sozinho de café. Não tenho problemas com isso. A cabeça de um homem é uma rosa de vidro duro. Cortando a cara, está a boca, território do dentista e da palavra. Escrevo estas coisas contra a claridade e, não raro, contra a alegria.
Porque a alegria seria poder não escrever. Não criar mais homens do que os já existentes, não mais rosas de duro vidro. Eu agora conto histórias e lances, sem filho embora. Da cama, vejo e ouço o ramo de árvore raspando o vidro: o ramo na minha cabeça. Todas as noites me são uma, daí que a minha felicidade seja um sistema feroz e totalitário. Pode o rolo dos meses ser tão compressor quanto lhe é natural: é uma noite só, só. Isto está correcto, assim.
De quando em quando, é de dia. Então, barbeio-me, visto um fato decente e saio para a rua a cheirar a sabão. É o mesmo domingo de sempre, claro. Farmácias fechadas, igrejas abertas, o rio pulsando a veia aberta de cobalto, o fumo da manhã, as pombas como cães rasteiros esburgando ossos de milho, mais a placidez acrítica do bêbado matinal ao fundo do beco. Saibam então que, então, me toma a feliz ferocidade de lhe ter sobrevivido. É provável que esta manhã ocorra de noite (o ramo no vidro). Não tem mal. Toda a gente é tão matinal quanto pode.
Os homens do meu Pai eram todos noctâmbulos. Também assim os lances deles. As estradas eram de terra, quando nelas chovia jorravam horizontais regueiros de café-com-leite, o pão era amargo, os filhos eram feitos num estremeção; e estava sempre a chover café-com-leite. Pouca diferença para comigo. Conheço isso, volto a ser feliz por causa disso. É o meu trabalho.
Hei-de levar-vos pela mão a este homem (não há engano, este é meu) de bom relógio de pulso, fraco colete de lã e orelhas entupidas de torrões de cera. Está ali, contemporâneo da minha mão direita. Usa um bigode tão denso e expressivo como um terceiro olho na mesma cara. Mãos cartilaginosas de comedor de canja, calças de fazenda preta; cotovelos de afiadeira, costas insignificantes, cinto de cabedal espúrio. Tem cinquenta e seis anos: e nasceu agora. Hei-de vê-lo a beijar um cálice de licor.
– Dona Judite, um cálice de licor.
Já está. Bebe à esquerda como um decifrador de palavras cruzadas. Sapatos de feira dormem-lhe aos pés como gatos de napa. Os joanetes embolam os gatos. Não tenho o meu Pai, tenho este homem.
Receio que me não acreditem, mas isto é a felicidade, mesmo que os traços sugiram a mesma tristeza e o mesmo domingo e a mesma floresta e o mesmo lápis. Alegria e felicidade nunca foram a mesma coisa: nunca foram a mesma pomba.
Fiz já algum amor, alguma comida, alguns livros e alguma sombra. Perto do meu coração físico, demora-se às estrelas o espectro da Pensão Central, abandonada e olheirenta. Entrei já, clandestino, nessa casa final. Terrinas de sopa branquejam ainda nas bancadas apodrecidas; penicos albergam ratos mortos de sede; um quadro vesgo recorda que há cabanas na neve, mas não para ti; sobrancelhas de arbustos vivos rompem pelas frinchas dos madeiramentos; e os mortos pensionistas reclamam chá de dentro das décadas estagnadas. Mas, dizia, fiz já algum amor (algum chá, também); e alguma comida, peixes salgados que deitei a assar sobre carvões rubros caramelizando a areia da praia; e alguns livros, onde se tornou inequívoca a impossibilidade de fugir; e alguma sombra, esse trapo que a luz deita a si mesma para não ferir os olhos.
– Dona Judite, um cálice de licor.
Os homens escurecidos do meu Pai correm os valados de Alcobaça, atormentados pelo ar frutívoro e pela música da água do mar da Nazaré, espermática na noite preta, reboadora, catedrálica, desumana. Eu não corro. Eu estou. Eu agora estou vivo. Isto é importante – porque me faltam muitas páginas.
Domingo de manhã, cruzei (cruzarei) a Praça das Cebolas, acossado pela repetição e mirado do limbo pelos cães dos toxicodependentes. Cheirei (vou cheirar) o vinagre das sardinhas fritas na viela por uma mulher de varizes cuneiformes, picardia aromática repercutindo por ondas na minha pátina de sabão. Ao fundo, a igreja de S. Bartolomeu, nesgada de sol e anemia. Além dela, a margem direita do rio, ao longo da qual tiracolam os pederastas suas tesões estéreis.
Só devo ter cuidado com o domingo por causa de o meu Pai reviver. Não se trata de uma intercessão de S. Bartolomeu, mas minha. Concorro a esse milagre sem querer, nem crer. Ele acontece, apenas. Algumas vielas foram iluminadas por ele, antes da rifa vascular-cerebral do fim. Ele cheirava a sabão, tinha raspado o queixo e surgia envolto num fato quase tão decente quão pobre. Sentia o vinagre das sardinhas, silvava melopeias às pombas, não havia drogados ainda, só cães, os mesmos. Ele não tinha estremecido ainda para fazer-me. Vem no meu sentido inverso: em verso. Já viu o rio, agora regressa, rumando aos Sapateiros, depois da camisaria. Não trocamos palavra. Isso é que já não pode ser.
A praça enche-se de homens, lances. A praça escurece. Há uma vozearia gráfica, como nos sonhos e na banda desenhada. O domingo excita estes homens carbónicos. A tristeza do meu Pai é tão evidente como uma toalha posta a enxugar à chuva. Descuidada, a memória alimenta-se de si mesma como o vento, que aliás sobressalta os cães e a placa de madeira do camiseiro. Percebo que isto é de estar a chover sem eu ter dado conta. Dentro da cabeça, a cronologia é meteorológica. Estou descalço: ele leva os meus sapatos. Se estou descalço, deito-me (o ramo no vidro). O domingo esvai-se.
– Dona Judite, um cálice de licor.
É de noite. Além da Pensão Central, a montanha desce-se a si mesma como uma história, ou uma vida, ou uma montanha. Estou vivo na antemão de tudo o que vem ainda. Há uma teimosia, nisto de as coisas seguirem vindo, que só pode ser galáctica. Luzitas eléctricas caspam, por todo o vale, o cabelo da noite: pequeninas vidas sem livros nem redenção, dentro das casitas, dos galinheirozitos, dos camiõezitos, da noite.
Caramulo, noite de 21 de Agosto de 2006
daniel,
ResponderEliminarobrigado por partilhares este texto. sabes que sou da nazaré e por isso...bebo um cálice e lembro-me de ti. abraço forte
Quando a recordação vai até ao fundo, os dias seguem mesmo iguais.
ResponderEliminaré tão denso, tão denso que quase percebo como profundo
ResponderEliminarnestas intricadas armadilhas do texto e das palavras, que pretende?
a vertigem da posteridade que escorre entre os dedos da sua mortalidade!
Olhe que não, restam os afectos, a memória do que cá ficam, e pouco menos.
A memória vai e volta, sempre, para quem verdadeiramente não esquece o que tem no coração.
ResponderEliminargrande abraço, Mário!
ResponderEliminare senhoras, igual.
Ufa...
ResponderEliminarAbraço.