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07/10/2005

As Mãos de Nick Cave ao Piano (work in progress)

Quantos de nós olhamos as próprias mãos, sem ser quando elas se lavam? Acontece-me muito olhar as minhas. Sou-lhes grato: alimentam-me, lavam-me, vestem-me, calçam-me, penteiam-me, folheiam-me os jornais e os livros, afiam-me os lápis, põem música a tocar, como outrora a cassete de Nick Cave. Tecem, soltas como aranhas, a teia mental: a caligrafia. Quão manuais somos? As mãos vêem no escuro. Dão sentido às chaves, aos interruptores, às persianas, aos copos de água das brechas do sono, ao outro amado corpo. Às vezes, na televisão, só filmam as mãos do pianista. O resto do corpo, invisível e cego, tem quatro mãos: na madeira polida como sapatos de casamento, aparecem (reflectidas, reflexivas) as duas outras, as do avesso da música: as que tocam as pausas. Outras vezes, surgem na rua enluvadas de couro negro, tornando parisienses as portuguesas. Outras vezes ainda, aranham-se, arranham-se, emaranham-se: essas são as vezes em que o amor as faz explodir como polvos, acácias ou estrelas. As mãos também gritam e sussurram também: as mãos do agressor, as mãos da mãe. As mãos, como as mães, afligem-se antes de nós. E nós, nós somos apenas o que está depois das mãos. Quantos, vivos, as olhamos vivas?

3 comentários:

  1. gostei desse jogo do "aranham-se, arranham-se, emaranham-se".

    ;o)

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  2. Schumann por Horowitz

    São herança camponesa, as mãos.
    Estas pequenas mãos, de geração
    em geração, vêm de muito longe:
    amassaram a cal, abriram sulcos
    frementes na terra negra, semearam
    e colheram, ordenharam cabras,
    pegaram em forquilhas para limpar
    currais:de sol a sol nenhum
    trabalho lhes foi alheio.
    Agora são assim:
    frágeis , delicadas,
    nascidas para dar corpo a sons
    que, noutras épocas, outras mãos
    se obstinaram em escrever como
    se escrevessem a própria vida.
    Ao vê-las, ninguém diria que
    a terra corria no seu sangue.
    São mãos envelhecidas, mas no teclado
    são capazes do inacreditável: juntar
    nos mesmos compassos o rumor
    dos bosques em setembro e os risos
    infantis a caminho do mar.

    Eugénio de Andrade

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