30/03/2014

Sou um "lampião" esquisito.
Dos meus 5-top-5 ídolos desportivos da infância/mocidade/e/para/o/resto/da/vida, quatro são do Sporting.
Consola-me que um deles, o genial António Livramento, me tenha vestido a cor também.
Camisolas e emblemas à parte, são figuras absolutamente gigantes para mim.
Só uma delas (Carlos Lopes) está fisicamente viva.
Mas todas respiram glória no meu Panteão de miúdo pré-cinquentão.
Eusébio. Vítor Damas. António Livramento. Carlos Lopes. Joaquim Agostinho.




Uma citação de Viagem ao País dos Nefelibatas - de Joaquim Namorado

Humilde
é a erva dos caminhos
Todos a pisam.

27/03/2014

Rosário Breve n.º 351 - in O RIBATEJO de 27 de Março de 2014 - www.oribatejo.pt

Quatro não-histórias para crestomatia alguma

1. Futebol

As formigas verdes querem comer, ou pelo menos matar, as brancas, que vêm contentes da casa das encarnadas, onde mataram e comeram na semana passada.
José Alves trabalha na Mutual e é fiel ao seu balão de anis, que toma ao balcão do senhor Assis. José Alves, branco, encarnadeja acintes ao senhor Assis, que, encarnado, reverdece de raiva.
Nisto, entra Filinto Elísio, um poeta de outro século. Não percebendo a discussão, sai de cena e vai tomar capilé a outro sítio, que alguém pintou de azul sem ser para provocar ninguém.

2. Acento Grave

Uma pessoa aclimata-se de pequenina a objectos preciosos que depois lhe tomam a vida.
Nalguns milhões de casos, a solidão colecciona selos: é a selidão.
Outros coleccionam pègadas, mantendo, por pura ortoteimosiagráfica, o acento grave.
Mulheres seleccionam amantes finos como caules de champanhe.
Rapazinhos domesticam rãs.
Menininhas adoram avôs.
No tudo, a vida e a morte coladas a cuspo pelo Tempo.
Depois, as segundas e as quintas dispersam-se como fins de feiras: horas ciganas, minut’oldos, segun’bancas, existir a saldo e a soldo, caixas aeróbicas com galinhas tísicas rodeadas de pintos de bairro social.
Eu fui escolhido por alguns Mundos de Aventuras (Matt Marriott, Wes Slade, Rip Kirby, Cisco Kid, Garth, Matt Dillon) com capas de Carlos Alberto, o mesmo de Camões e de Romeu e Julieta em cromos.
Uma pessoa é para o que nasce, é para o que morre.

3. Pensar em Si

O pensamento tem ruas onde entardece.
Também nessas ruas deflagra o pequeno comércio: frutas de furta-cores, flores de tela, sapatos de corda, relógios também de corda, café de cheiro, banco de frio numerário, açougue em sangue, farmácia asséptica, electrodomésticos de ocasião electrodoméstica, lotarias lá fora por uma vida melhor, próteses básicas.
O pensamento é uma (c)idade feita de outras (c)idades, trechos de aldeias e bosques, planos directores sem direcção de pormenor e, ainda ou até, placas de desorientação que dizem Coimbra, Leiria, Barrocal; Porto, Lisboa, Espanha; Albergaria, Londres, Guia; Viseu, Baleal, Carriço; Versalhes, Lameira, Lagares; Santiago, Santarém, Charneca.
Por tais ruas passam como segundos incertos certas pessoas pensadas a vagaroso contra-relógio: benignos fantasmas à hora do chá, de magras mãos depostas ao lado do prato de biscoitos sobre mesa-de-camilha. Nas paredes das ruas-de-pensar-nisso, há cartazes que antigueceram sem dor: touradas de outros verões, bailes de falidos outonos, recenseamentos eleitorais que coincidem com a época venatória, Julio Iglesias no Casino Atlântico, Marco Paulo no Viuveiro, vota Partido Nacional, uma Promoção a Pensar em Si.

4. A Dor, o Alívio

Não quero contar a dor, mas a memória da dor.
Fazer de conta que ela não me interessa nem existe senão na forma contada, dia a dia contada. Conto e conta: palavra e número: meus recursos.
Dias contados sem apelo e com agravo: histórias, imagens, lances, datas, pânicos, serenidades.
No fundo, o mar de terra vegetal, seus peixes calcários, seus tufos de espargos, trevo, funcho, um monte geodésico, o horizonte vertical do meu Irmão.
É isto que estou a fazer, enquanto a vida, de lado, me assiste, meteorológica, escrita, sem outra memória possível que a da invenção da dor deveras.
Recordo: o alívio de, comparada a vida com o céu nocturno de Verão, a dor não ter sentido. No sentido de não ter aonde ir. A dor, não ter aonde ir a dor: o alívio.
Era outro Verão. Tinha anoitecido. Cheirava a feno e a animais cansados no limite da doçura. O ar podia arredar-se à mão como a uma cortina.
Tudo tinha o ar de ter vivido o suficiente. As coisas mundiais muito bem dispostas no tabuleiro largo: o céu estilhaçado de cardumes de cristal, o monte de veludo negro parado como um touro, a terra estremecida de silveiras e ratos, os olhos do menino expostos à mais pobre e mais terrena imitação das estrelas: os pirilampos.
Eu não podia saber mais do que tudo. E tudo era a sombra ambulante de meu Pai: dupla sombra. Então, nessa outr’hora hoje falseada por minhas artes e manhas de aliviado, a felicidade era a moeda que luzia na arca.
Hoje, não tenho em que gastar esse dinheiro sem câmbio nem remissão.
Não importa.
Olha o céu. 

24/03/2014

Conheci Augusto Mota em pessoa(s) - foi em Leiria, sábado, 22 de Março de 2014. Fiz-lhe um soneto, trouxe um pão.



Com Augusto Mota e Rosa Neves
Fotografia de Ana Ramon



O QUE NOS DER O DIA




XV


Vou hoje ver e ouvir o senhor Augusto Mota.
Isto decorre no sábado, Março-Marçagão.
Ao alto viceja o Castelo, do qual a cota
eu só azimuto por aproximação.

O senhor que é Augusto augustamente persegue
a rosa do dizer ficado por escrito.
Sem dito prescrito, persegue ele a rosa
por ser da Ortigosa & do Portugal pequenito.

Vou vê-lo agora, sentir que nos diz.
Oxalá muitos anos o tornem feliz.
É na Cerca do Castelo, mesm’ ao pé da Polícia.

Eu fui convidado. Venho sem malícia
ser grato & presente & gente por demais.
Poesia é a palavra feita gente. Nem menos, nem mais.

20/03/2014

Rosário Breve n.º 350 - in O RIBATEJO de 20 de Março de 2014



O primeiro a sair que diga por onde é que

Antigamente, só de alguns ofícios se podia afirmar, com razoável caução e inspirada garantia, que eram profissões/carreiras de muita saída. Por aflitiva e angustiosa e factual tristeza, hoje são-no quase todas: os professores estão de saída, os enfermeiros dirigem-se à saída aeroportuária, os operários navais estão como na canção do Fausto: “o barco vai de saída”, os funcionários públicos idem e etc. – tudo e todos tão de saída, que os mais novos nem a entrar chegam.
É isto que a lápis mental vou penosamente considerando quando dou de fuças, em parede antiga de viela baixa-histórica, com a seguinte gritante-garrafal-caixa-alta-vermelha-spray inscrição:

CRISTO VAI VOLTAR

– Outro D. Sebastião… – rosno eu para com as minhas miudezas botão-acústicas. – Ele que não faça isso, que neste morredouro de míseros nem para Ele há milagres – cuspinho eu à maneira dos fumadores de mata-ratos.
Tenho rosnado muito. Muito e em vão, à catedrática maneira dos revolucionários de sofá, neste cada vez mais redoliano barranco de cegos a que não adianta bradar Alto e pára o braille! Rosnar, rosno – mas quase tudo do quase-nada em que esta choldra piolheira descambou me dá pigarro canídeo à interjeição. E logo a mim, espécie de lobo desdentado que, se e quando alguma coisa mastiga que não seja o próprio cuspo, o faz mercê de uma geringonça dentada à base de resina acrílica plastificadora até do sorriso, quando algum.
No bolso dextro do blusão, porto um poema de amor inçado e inchado de turva fatalidade. Mandou-mo um amigo tristonho como eu, que como eu e comigo se carteia electronicamente a mote de tudo o que seja indignações, gajas boas e piadolas frescas. Reza assim a missiva (que fiz imprimir por masoquismo):
“Descemos 3 posições no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.  
1,4 milhões de desempregados. 
Défice sem baixar. 
Dívida a chegar aos 220 mil milhões. 
Adiamento do pagamento de dívida através da troca, de uma taxa de juro de 1,5%, para outra de 4,5%. 
PIB ao nível de 2001. 
250 mil emigraram, só desde 2011. 
2 milhões de pobres, em 2011. E em 2013, 2,750 milhões. 
E agora, dados de 2013, 660 mil famílias não conseguiram pagar empréstimos à banca. 
500 mil pessoas com salários penhorados em 2013, recorde. 
Mais de 14 mil presos nas cadeias portuguesas em 2013, recorde.
Relendo-a pela enésima-cagagésima vez, sinto-me (e arvoro-me logo em) Pirro. Era no ano 279 a.C. E o generalíssimo assim para os seus oficiais: “Outra vitória como esta e estamos perdidos.”
Tenho para comigo e por certo que o género humano é o maior erro trágico da Natureza, não de Darwin nem do tal Cristo que há-de voltar mas é o caraças. Na mesma linha, o cancro é uma moléstia estúpida porque, matando o hospedeiro, se mata a si mesmo, coisa que equivale, sem tirar nem pôr, ao capitalismo selvagem made in América & Berlim. E o seguidismo acrítico é uma manifestação clara da escura acefalia – mas vão lá dizer isso aos tontos dos Ucranianos, mortinhos como andam para que lhes troikem a vida como a nós nos troikaram os passos.
Definitivamente provisório como a vida mesma, resgato-me destas tristuras macambúzias ingressando numa tasca à antiga portuguesa no propósito de beijar, à maneira de artista, um càlicezito de bagaço daquele áspero-carvalhoso que sulc’arranha arrepios cuteleiros na isca da figadeira. Em meu derredor, o antro jubila de colegas desempregados e de reforma-roubados que bebem do mesmo enquanto lambem a bisca ou concatenam o espinhaço de baquelite do dominó. É então que, compulsando a edição do dia do Diário de Notícias, um gajo alto de gestos alquebrados que lhe tornam a locomoção parecida com a dos que acarretam cegonhas mortas às costas, é então que ele altivozeia assim:
“Então vossemecêzes não me querem ver esta? O Pintas da Bosta agora quer que o meu Sporting desça de divisão! Diz ele que o puto presidente de Alvalade não sei quê coacção dos árbitros! Porra, ao cabo de 30 anos de trafulhices larápias, este gajo ainda tem a alma ao lado do cu para ladrar merdas destas sem vergonha nenhuma, c’um carácio, ó pàzinhos! Sempre quero ver a que saída vai dar isto!”
– Também eu – volto eu a rosnar para comigo. – Também eu. Mas dá-se que, apontando eu o nariz à saída do tabernoso palácio, se me escapa audível um “Enfim, mais do mesmo.” Solícito, o taberneiro serve-me outro conhaque nacional, glaucoma líquido do olho do Diabo, a que, enfim, dou honras de escorropicho com uma cabeçada de arrecuas tecnicamente perfeita.
E acabo por ali ficar ronro(s)nando solilóquios de beberrão impenitente e resignado ante a evidência de nem isto nem a taberna terem, como é que eu dizia?, saída nenhuma que não seja para pior.

14/03/2014

Mais para o 25: de ontem já e já de hoje

FOTOGRAVURA INSTANTE

Leiria, quinta-feira, 13 de Março de 2014

Manhã.
Uma bambina chilreia na praça.
Entretida com o próprio infinito.
Passarito sideral.
Haja luz.
O Inverno foi de rigor longo.
Uma boa parte da colin’além é ainda verde.
Em campânula, um bom azul-redoma.
Cristalaria da nitidez.
É um referendo ganho.
Isto não morrer nem renascer.
Isto ser isto.
Isto ser isto assim.
Labuta dos elementos concordes.
Do ar, as povoações retalhando a terra.
Ontem, o olho-lua superintendendo.
A tundra gelando até o desejo-taiga mesmo.
Certame dos avindos.
Termos tido manhãs assim sem remédio.
Braço esquerdo, da moç’além, mãe da bambina.
& o bom verd’além em colina.



TOTTENHAM, 0 – BENFICA, 1 AOS 29 MINUTOS
– prosa dos restantes 61’

Leiria, quinta-feira, 13 de Março de 2014 (Noite)

A cidade arrefece a horas certas.
O polvo do movimento anestesia-se a si mesmo.
Não é desagradável sentir o deserto no corpo.
Coladas a cuspo de luz, janelas no cartão dos prédios escur’anoitecidos.
O arvoredo frúi a aragem que arrepia (f)rio.
A oriente de nada, a ocidente de nenhures.
Pasmo das rotundas: como olhos vazados.
Veludo refrigerado, solidão consuetudinária.
Isto do mundo é tabuleiro tudo.
Numa casa-de-pasto de largas altas vidraças, três, não, quatro indivíduos comendo sopa, cada um a sua mesa: peixes humanos em aquário, cada por si, gerindo cada um o orçamento próprio, sem mulher cada um dos quatro, única refeição quente do dia, vão levando o que trazem à vida, deixam-se anoitecer, deixam-se a noite ser.
Numa colina, o Castelo. Ermo.
Noutra colina, o Cemitério. Ermo também, mas de outra maneira.
Nos arrebóis, lumes domésticos, motorizadas encostadas à parede do telheiro, arames para a roupa crucificando camisas e fatos-macacos, no curral o porco repleto sonhando açougues, dia de reunião da Associação, resolver aquilo com o padre e com o patrão da pedreira para a Festa de Agosto.
Talvez.
À beira-rio, as solas percutindo cascalho, como se esmigalhando diamantes, prensando quartzos, incalculáveis tesouros do nascimento do planeta.
Sono das coisas, palidez dos vidros, rasto-rumor (luz-motor) de camiões na via-sacra-rápida muit’além.
Vontade de seguir num deles para qualquer lado.
À porta da pensão, boceja o padeiro, veio tomar café, regressa ao forno, artista nocturno.
Tabuleiro tudo, sim, é isso.
Paredes bem pintadas, a deste reduto.
Ele ainda há operariado com valor.
Gente insigne – mas antes o Castelo, mas depois o Cemitério.
Tem de se viver em obra.
Obra corrente como as águas da pensão, por cujo Lumiar há pouco o padeiro.
Falta pouco para Abril, ou Novembro, ou coisa assim.
De manhã, na papelaria, o homem de colete verde; o balde com rolos de papel-de-parede para quarto de crianças; o aprumo afiado da lapisaria; os cadernos sonhando a tinta do futuro.
Pela finimanhã, revoando pelo chão as folhas de uma revista estraçalhada.
Esquerda cardial, dextra cardial, zénite sideral, nadir do nada-nenhures.
O tempo é este, o vapor, a espuma, a escuma, é este o trabalho, esta a atenção.
Depois não vale já a pena, qualquer pena.
No osso da página tornada possível.
Como os restaurantes da beira-mar no Inverno agreste: aquários também, que do mar temem as águas em revolução.
Dizem que esta foi a mais pluvial invernia dos, digamos, últimos 35 anos.
Em Londres, últimos 32 minutos, o Benfica vai vencendo por 1-2.
Repousar um pouco junto ao candeeiro (cúbica e amarela, a peça luminotécnica).
Ar de enfermeira cansada, a da senhora que entra: encanecidamente entra, olhos aguad’azuleados, joelhos cambos de fadiga, sapatas brancas de couro sintético, sem adornos auriculares, sem anéis, sem verniz onicológico, blusa cinz’água fina, camiseta desmaiad’amarela, bolsa larga mas não atulhada, mãos laborais.
Se a eternidade for parecida com isto, há-de ser aborrecido morrer.
Quando a gente nasce, já os primeiros créditos do filme passaram há muito, passa-se o resto da fita a trabalhar para The End.
Belas palavras, belas frias palavras, minha querida.
Muitos de nós, sabe-se, chumbados à caliça da memória.
Dos idos em nós, persistência ou do nome ou do timbre palato-vocálico, ou da cercadura pisada dos olhos, ou do feitio dos dedos (pés & mãos), ou do ricto comissúrio-labial. Ou quase tudo em um.
Como aqueles, um por um, comedores de sopa. Três. Não, quatro. Só dois agora. Os outros pagaram & desandaram. Não ligam a futebóis. O primeiro a ir-se embora: pode ser Pietra. O segundo a partir: pode ser Arsénio. Os que ficam – Janeiro um; o outro, Crispim.
A sete minutos do término regulamentar, o capitão encarnado, Luisão, averba o terceiro tento da equipa, segundo da conta pessoal.
Se calhar, a reunião da Direcção vai ser só depois do jogo, sempre os homens casados têm desculpa para só regressar pelas meias-noites. Em solo britânico. Em areias de Portugal.
Isto é só uma quinta-feira. Não tarda, é Junho ou Fevereiro.
Infinitude possível: olhar o pano preto que azul foi: céu que dá noite, fabrica sem medida toda gás-vidro e deus nenhum, olha o diabo.
Dão três minutos de desconto, nem a toda a gente é concedida tanta largueza.



PLANO(S) QUIETO(S)

Leiria, sexta-feira, 14 de Março de 2014

I

Duas mulheres goelando ante chás-gelados-palhinhas, os telemóveis ao lado como pistolas de prevenção.
De manhã recordei-me da tarde abrasiva, foi no Verão de 2010, a Mãe no Lar assim para mim:
– E tu, quem és tu? –
e eu, escrevivente, fazendo, ainda & sempre, por ter o que responder-lhe.

II

A outra mesa, um rapaz esbranquicela de cabeleira à rasta. Vai enfardafarinhando-se de um mil-folhas crepitante. À frente do falso jamaicano, um rapazola parecido com o Marc Anthony cantor. Mosca-pêlo no sublábio. Bebem ambos coca-colas.

III

Além: a pomba de peito-madame-pompadour. Pombadour, portanto. Mais além: o estádio feio, o estádio absurdo. Entre estádio e pomba, o Lis, veia a tudo indiferente menos à ânsia pelo mar da Vieira.

IV

Quieto, aqui. Calmo. Um ligeiro toque de ansiedade, sim, mas perfeitamente dominável. Bolo de chocolate em casa, café feito de fresco. Pesadumbre palpebral. Não ceder à vocativa sesta. Alinhar linhas novas na máquina-info, arrancá-las ao manuscrito.
E então, isso feito, esperar por as que a noite queira dar.

Linhas para o Caderno 25/Leite dos Santos - todas de Leiria, quarta-feira, 12 de Março de 2014

Q’À MESMA (COMO A LESMA)

Não oro
Não coro
Não corro
Não choro
Nem imploro
Que à mesma
Um dia
Morro.



CUIDADO CO’ HOPPER

Não fundarás, sequer fundearás, esta noite, qualquer diferença entre teus pares. Olhada de perto (i. e., de dentro), a realidade pode ser o desert’esespero, tem cuidado. Este homem é só como o poste-lampião público: quão privada é a malga de sopa que ele ingere contra o futuro. Numa casa-de-pasto pelas mesmas moscas habit(u)adas há décadas. Cuidado: que Hopper te não vassale a cabeça-em-visão.



SONETO DO NOME DA MÃE

Já que nesta série de cadernos me dispus
a dispor (de) alguma coisa da minha vida,
dou-as, vida & série, à própria luz
que branqueia muita coisa anoitecida.

Saúdo por dentro os leais amores fiéis
que berço me acalentaram sem preço.
Meço por meu nome os outros Daniéis,
que assim nos ’inda tratam, por bom apreço,

na terra onde gente me fiz quando feito.
É a norte da Coimbra-Pátria, é na Pedrulha.
Conheço cada pedra, cada braço direito,

cada pomba que ladra, cada caderno que arrulha.
Sítio da nascitura Hermínia: Maria Luísa
era p’ra ter sido. Não foi. De nome já não precisa.



BUCO(O)LISMO

Continuam elipsemente bonitas
as andorinhas que aos céus de Portugal
pintam de tinta-dita-da-China, catitas
& gaiatas quais crianças sem igual.

Prestam-se bem à melancolia
do nosso País os regatos inter-rurais.
Cantam prata noite & dia,
são frescos tenores sem rivais.

As mulheres dos homens, essas
fazem-lhes casa, tornam-nos lar.
Sem que eles o cheguem a topar,
montam o puzzle, unem as peças
(as doenças, os domingos, quebra-cabeças
que a sós eles não sab’riam juntar).



SONETO DO PRÍNCIPE REAL’VENIDA

Eu tive um pátio-quintal em Portugal.
Eu era então outra idade.
O tempo por demasia veio, mudei de cidade
– como quem idem de camisa ou de mulher, qual

inocente idiota malabar de bar em bar.
Ainda nessa vida (des)ando idiot&nocente.
É a minha forma de, só, ser só gente.
Aquele, olha, é casado, está p’ra s’divorciar.

Isto tem só de ser música, não precisa
sequer de haver plateia, balcão ou frisa.
Havia (era em Coimbra) o Teatro Avenida,

do Príncipe Real nomeado à fundação.
Foi quintal, foi pátio, teatro foi. Já não.
A vida a ter atém-se, pois, à vida (t)ida.

13/03/2014

Rosário Breve n.º 349 - in O RIBATEJO de 13 de Março de 2014 - www.oribatejo.pt



Onde falam homens, calam-se estátuas

Eu agora era o Salgueiro Maia,
capitão não de mas por Portugal,
eu agora como sempre até agradeceria que nem me mudassem de sítio,
isto porque o sítio onde eu estiver há-de ser sempre apenas o sítio onde eu me quiser,
eu morto ou vivo,
ou eu mais vivo agora até do que nunca,
hoje até se calhar,
mais do que alguma vez,
preciso sou do que no sítio onde estou,
escusado é até que chamem Liberdade ao Jardim onde me puserem,
liberdade há-de ser sempre o sítio onde homens como eu estiverem,
nunca na puta-da-vida liguei a efemérides de busto-em-vida,
da minha vida a despedida terá sido fugaz mas nunca arrependida,
a chatice do cancro,
chove Deus ou o Diabo por ele a cancros,
a melancolia de deixar pesarosa a mulher que tive por privada rosa,
mudar-me de sítio para quê?,
mudem mas é de sítio a des-gente do meu País,
esta sub-canalha que nunca há-de ser feliz,
não de azimute-topografia,
não a mera rectangular geografia,
mudem-se-vos antes dessa estranha gente canalha
que mais despreza a terra contra quem mais a trabalha
e que faz de todos nós connosco mesmos mudos da surdez da voz,
um País de si mesmo Pátria indiferente,
uma estátua de sal para mim não é ser natural,
é nocivo,
é virtual,
alguém que pela tarde fria
da História-Pátria-Mitologia
viu na estátua de sal
um tal Salgueiro Maia tudo menos real,
alguém que olhou para trás e se arrependeu,
ora tal tipo de gajo ou capitão nunca fui eu,
tive pena até do Marcello do catano com dois éles,
coitado,
ratito  encafuado no Carmo
onde o cerca-sitiei,
por e de maneira que eu cá sei,
na manhã atónita vibrava o megafonialtifalante,
como quem vibrava o nítido futuro naquele mesmo instante,
do cravo o rendilhado rubroverdeava tanta coisa rouca,
que até ser livre,
começando-o só a ser,
parecia coisa tão pouca,
e a minha mulher tão preocupada em casa,
as mães-mulheres deste País desinfeliz,
tão preocupadas em casa,
rosa,
asa,
digo,
mulher em casa
sem saber se ir a pé a Fátima, se de chaimite ao futuro,
um homem é um homem,
uma rosa é um País,
é um homem com mulher,
lembro-me agora,
estátua,
de ter mudado de sítio por ter sido eu a querer fazê-lo,
bronze ou não,
sal ou sopas,
quero lá saber,
eu agora não era isso,
eu estátua é que nunca fui,
estátua é que eu nunca fui não,
saí de Santarém e vi Lisboa,
a madrugada era boa,
amanhã ainda sou Salgueiro & Maia & Capitão.


O País é que se calhar não.

12/03/2014

TROCO ESTAS DEZ ESTÂNCIAS POR OUTRAS TANTAS ANDORINHAS DE BARRO P’À PAREDE DA MINHA VARANDA (Leiria, quarta-feira, 12 de Março de 2014 - para o caderno 25 da série Leite dos Santos)



Talvez um cais fluvial, suave ave
arejando a doçura do entardenoitecer,
o corpo veicular fazendo-se nave
a singrar / a sangrar às contas co’ ser.

Barcarola do improviso à bolin’arreata,
depois do café-com-leite & do pastel-de-nata,
confortado, requentado, frequentado,
corpo-eu-meu dando o dia por rimado.

Além, no adentr’olhar, as coisas atlânticas.
Acima, o pesponto respigado sideral.
Não ser isto nada Paris, mas algures-Portugal,
terra de patrícias mel-mil-maravilhas semânticas.

Macerados laranjais de ouro-sangue a poente
incendeiam da visão escrita a bonomia.
Fez calor até & esteve de sol o todo-dia,
em lânguida euforia transou a comum gente.

Agora uma mulher pintada-capilar neva perto:
parece seu quê de cegonha, qq. coisa de M.ª Alberto.
Fufa talvez. E talvez não. E vai daí,
aquilo serve para o que é amailo pró chichi.

Pintalga a retina o cosculhar cromático
dos diamant’esmigalhados na aquasfera.
Na paragem do autocarro, ’ma mulher espera
o dit’omnibus, cujo atraso é luso e matemático.

Vacum galinhedo brasileiro já manobra
em mariposante aproximação do bar-alterne.
O putedo é profess’oss’ofício perene
– e mais tomos tem do que eu obra.

Casal tisnado, sessentão, abastado
acampa de mesa à dextra minha.
A ela seu chá frio alimonado.
E ele, olh’ó proleta!, c’a bela cervejinha.

Rêgo mole de nata-banha, as mamas dela.
Canetas-canelas agudas, o passarão.
Ele ’tá bem reformado, arrecebe um dinheirão.
Ela nunca fez nada, tirante uma q’outra mijadela.

Estou aqui deposto em sossego. Barbarizo.
Apanhei jeito escrevente, mas não juízo.
Do mais que não conto, por ser já tarde,
conto contar amanhã. A malta q’aguarde.

Três de hoje para o caderno 25 da série LEITE DOS SANTOS

ORATÓRIA DO NOME

Leiria, quarta-feira, 12 de Março de 2014

O nome dele levo e trago no meu corpo.
Pertenço todo a esse nome como dele todo fui.
Agora é entre outros papéis que me deixo.
Moro longe do mar mas é barcos que vejo.
Cerrar os olhos me basta a ser náutico.
Dele o Irmão Alberto hoje faz cem anos.
Faz sem fazer, morto profissional desde 1980.
Mas digo eu que faz, cerrados os olhos, serrado o olhar.
O nome dele leve enquanto trago.
Enquanto o amargo vinho trago fora dele.

Quididade me basta e sobra: de Coimbra camponês.
Hoje enfim mais dado ao operariado a lápis.
Distribuidor de pão-de-pombas.
Pardais às vezes, quando a mansa brisa amansa.
Nada de muito importante, um deix’andar.
Açucaro o vasto deserto ilegível.
Chamam-me pelo nome dele.
Viro-me, é afinal só comigo a sós, que é dele.
Sem fazer ondas, sem senão aflorar o precipício.
Ainda não é a cegueira, ainda não é já renascer.



POR AQUI NÃO HÁ INGLESES NEM INGLESAS MAS

Id., id., id.

Três homens, um de cada vez.
Nenhum deles é Drake.
Nenhum deles, Clarke.
Nenhum, Greene.
Portugueses, estes.
Um é bancário.
Outro também mas de outro balcão.
O derradeiro é senhorio, vive do ar dos outros:
respirar torna-o rico.
Homens como casas: tarjados a azul por baixo.
Tenho comigo uma libra para gastar em vinho & biscoitos.
Sendo menos amargo no nome: roxeando a boca.
Posso passar-ser o resto da vida a fazer isto.
Isto: a diluir o deserto que vai.
O deserto que vai da palavra
cara
à palavra
rosto.
Uma malga de sopa à
face
da lareira, numa tarde fria comida a sós.
Agora que a Primavera se conjura/conjuga.
Copo de água açucarada pela garganta.
Até ao fosso do estômago, águ’açúcar.

Estas três mulheres agora na tarde.
Nenhuma é Maureen.
Nenhuma é Cora.
Nenhuma, Rosie Ann.
Portuguesas como telhas vermelhas, todas.
Duas prostituem-se tipo deLuxe.
Éguas caras de montar, a avaliar pelos adereços.
A outra gosta de ler porcarias: Danielle Steel, MST.
Antes de as receber neste caderno, fui-me a casa.
A essa hora ninguém nela, só os retratos.
Tenho algum tempo agora.
Na praça calçada à portuguesa.
Na praça, um restolho de cadeiras-mesas azuis.
Humanos entorpecidos derredor.
Lagartam-se ao bom sol de Março.
Jibóiam as falas.
Uma das de aluguer diz a palavra
parábola.
Esta deu aquela em étimãelogia.
Rapazes de gravata mal-acabados de criar.
Cheiram ainda a cueiro púbere.
Professoritas envelhecidas com água mineral.
Uma careca reverberante como um farol.
Pertence àquele cavalheiro de casac’antílope.
Ao longe (mas perto de mais) o alarme de um carro.
Passa uma rapariga silfidesca.
Cabelo-caril, túnica roxa à Senhor-dos-Passos.
Sandálias douradas, em que dois pés sem peso.
Escrevive-se aqui em razoável qualidade de vida.
Posso (&passo) o resto da vida em anotação.
Quase nem crio: o mundo dá de si.

Cerro os olhos, cedo à epifania voluntária.
Epifania voluntária: vento penteando trigais.
Ouro maduro. Chapéus lenç’atados ao pescoço.
Ar-vidro-ardente reverber’ondulando fornalha.
Talvez tome outro café, veio morno o primeiro.
Cálidas maravilhas para trazer à boca.
Agora um homem de cachaço vermelho.
Afogueado seu bafo, seu baço: gostador de bagaço.
Como eu, menos a parte do cachaço, a cachaça.
O Inverno de 81 foi fronteiriço na minha vida.
O Outono de 86 também.
Em Janeiro de 85 um dente ia dando-me cabo.
Em 89 abri uma janela ao vasto nada.
Foi uma década interessante.
Ainda bem que está morta.
O Maradona senhoreava então o mundo.
Não sei para nem por que falo nisso.
Tudo irrisório, risível tudo.
Uma friúra de convento nos ossos, às vezes.
Progressão na carreira – digo: no bolor.
Namoradas profissionais.
Aquelas duas, digo.
Digamo-las: Maureen Drake & Cora Clarke.
Mais do que as duas esperta, a Rosie Ann Greene:
senhoria, a magana.



CÉLERE SÍLFIDE

Id., id., id.

Donairinha rapariguinha
levezinha avezinha
passa paira pára espairece
decide-se pela esquerda
& desaparece.

Canzoada Assaltante