28/02/2011

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 115

115. CONCOR 5 mg + DAFLON 500 mg

Coimbra, quarta-feira, 10 de Novembro de 2010

Como desde sempre é para o chão que olho em vez de em frente, as cabeçadas em postes e sinais de trânsito acontecem-me quase tantas vezes quanto os achamentos de lixos e de papéis escritos. Por um destes dias insalubres e solitários que vou e venho vivendo, baixei-me para colher da rua um fragmento literário de cuja veracidade monumento-documental deixo prova mercê da colagem ao presente manuscrito do dito papel.
De um lado (salvaguardo com XX dados pessoais):

GUIA DE TRATAMENTO PARA O UTENTE
DADOS DO UTENTE
NOME DO UTENTE: XX XLIXXX XX XX
N.º CARTÃO UTENTE: XXXXXXXXX
TELEFONE: 239XXXXXX
ENTIDADE: ADSE
N.º BENEFICIÁRIO: 006XXXXXXXAP
DADOS DA PRESCRIÇÃO: CS CELAS
MÉDICO PRESCRITOR: AXXXXXXX XOXXXXUXX
MEDICAMENTOS:
CONCOR 5 mg Comprimido revestido 5 mg Blister – 28 unidade(s)
DAFLON 500 500 mg Comprimido revestido 500 mg Blister – 60 unidade(s)

No verso da prescrição clínico-medicamentosa, presumo que a própria utente (uma senhora, sim) se prescreveu a si mesma a seguinte guia a tinta preta:

Ervanária
1 caixa pastilha (caixa rôcha)
D. Céu
1 pão de mistura
Peixaria
2 postas de salmão

Acontece que este achado me enternece. Tornam-me vívidos, vividos e reais a Cidade e o Mundo. Tenho feito muitos achados assim. Todos me movem, comovendo-me todos. Isto é a realidade. A minha é, pelo menos. Claro que este papel não é lixo. Este papel é Alice-Procura-Dono. Siga-se poema de/para este papel:

Alice procura dono, COFLON.
Alvíssaras pela minha vida onde a trovardes:
morrer é mau, viver é bom,
mas o contrário também, depende das tardes.

*

Colei o papel achado ao caderno (cf. p. 657). Bairro Norton de Matos, que antigamente foi (do) Marechal Carmona – alguma justiça toponímica na História-Pátria-das-Ruas-de-Coimbra, apesar de tudo. Na Sé Velha, rezam ainda, cada ano, missa aniversariante ao velho Estado-Novo-Salazar-Salazar-Salazar. Vezes há em que me sucede (como agora mesmo, that’s the spirit) perten-ser à/da História: um rapaz avelhentando-se, de casaco de cabedal castanho e calçado preto extremado a ponteiras de aço, por ruas e bairros sem mais nada que fazer senão inventar e/ou achar papéis, de 5 e/ou 500 miligramas. Peso da minha vida miligramática: nascer a 500, morrer a 5. (De que mês, I wonder.)
Bate devagar a solaridade na Praça Infante D. Henrique, esse (também) tomador de Sagres. Trata-se (atenção!) de um solário de pobres: cercanias e imediações são escassa e esparsamente povoadas de aposentados dados à reumo-lentidão e a ideários de Coimbra, de esborciadas palhetadas a tintura de madeixa que umas contra outras disputam aperfilhações, de poetazitos dados à mansidão alcoólica em ponteiras de aço, de músicos sem diapasão nosso de cada dia, de receitas sem doutor nem alice, de quem-é-que-diz-quem-foi-que-disse.

*

Pela calma das tardes volveremos ou não
a quanto foi quinta e ínsua e Verão.
O músico trova pelos campos, acha um pouco de broa.
Ao longe, a moagem chia o pão.
Isto são campos de água, trevos, silvamadres.
Aquilo, laboratórios de cal causticando famílias.
É a mó das gerações, as cópulas no escuro,
os ovários do povo-fêmea esferovitando pedreiros.
São os amieiros.
A linha da vala corre óleos furta-cores
(há oficinas perto ainda, ainda fábricas) – e
à União Europeia faltam tantas décadas
para Portugal, este dos corredores a pé,
os subassalariados da recta da Adémia,
o vento feito de cheiro de choupos,
as galinhas afogadas nas cheias
devoradas sem calma pelas ratazanas,
essas nadadoras olímpicas e leni-rienfestales.
É estranha (dada a natureza nossa
de compradores de iogurtes) o quão
devagar apodrecem as cabeleiras das senhoras,
mesmo as egípcias, mesmo as assírias &
alvins.
Também é estranho não amar.
É estranho amar mal e alguém que,
fazendo-se embora ninguém, alguém
segue sendo,
como no caso de Cristina Lavransdatter,
uma criação de Sigrid Undset de 1910-1-2,
que volverá ou não,
derretida a neve
em pleno Verão.

*

Desvelo-me devagar as cortinas gázeas.
isto da minha vida é esta vida minha.
Tenho reescrito as tais mesmas várzeas
por que meus ancestros d’arábias e ásias
as fizeram suas na indiana linha.

Nov’ & velho se ardem acima do Sol,
que é centro tudo e tudo arrebol.
O mais que direi? Preço das sapatilhas
que este Natal hei-de dar às filhas.

*

Os dias são tão úteis quanto os gatos.
Maus tratos sofrem as gentes não vivas.
Recidivas parecem as votivas
belas velas queimadas por os ratos.

À luz do azeite padece a menina
que, bela, nasce em a luz encarnada:
e o casal que a fez, a fez amada,
chamar-se-á Maria e/ou Cristina.

O resto é tudo palha de centeio,
é o tratar da quinta, das moagens.
Não vivas por imagens, que no meio

alguém muito feio tirará vantagens.
Do tudo que te disse, esquece, Alice,
o tudo que falei e, gato, disse.

27/02/2011

Ideário de Coimbra - 114

BRANDOS FRÉMITOS

Coimbra, terça-feira, 9 de Novembro de 2010

Dias lentos e noites paradas declinam, por aparente paradoxo, a rapidez efemeríssima da Vida. Oponho a isso uma paliçada de papel, que escoro (e escorro) com horas ledoras. Esta manhã mesma (que deveras principiou à meia-noite com a conclusão do primeiro volume da trilogia Cristina Lavransdatter – A Coroa, de Sigrid Undset), o trabalho de escora recorreu a Tertúlia Ocidental – Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, de António José Saraiva. E não é sem um brando frémito que assisto à parada cursiva das barbas e dos sonetos de Antero, à Hespanha como Ibêria, à Liga Patriótica do Norte, ao Chiado subido até a esquina da igreja do Loreto, à Coimbra oitocentista, à principesca (e simiesca) das adulações acéfalas de um Pinheiro Chagas ao cego Castilho, aos jornais e revistas ressumando estudos e insultos e patriotismos de pechisbeque, à Internacional de cisão Marx-Bakunine, às Conferências do Casino, a Ramalho Ortigão, à Civilização Ibérica, à perda do Brasil e da importância, a Portugal ser uma coisa até D. Sebastião e outra depois da morte de Camões, às estapafurdices rácicas do indígena luso, aos misticismos frívolos, à siamesa Galiza, à sequência D. Diniz/D. Fernando/ D. Henrique como nervo íntimo da vida portuguesa, aos Cruzados tomando Lisboa, aos Genoveses ensinando-nos a marear, ao facto de que não se vive de passadas glórias, existe-se por via de forças actuais, ao conceito de que há uma parte da História que não aparece no acontecer e muito menos no acontecido. Manhã, portanto, de algum crescimento, até, por assim dizer, português. E, claro, a Comuna de Paris em 1871, a morte de D. Luiz em 1889, três anos antes disso o casamento do príncipe D. Carlos com a senhora D. Amélia, mais o Ultimatum inglês de 1890, terminador do ingénuo (por isso mesmo que nosso, extinta potência colonial) Mapa Cor-de-Rosa.

*

Minutos solares durante a chuvada intensa: telefona-me a minha Leonor para me ler um texto que compôs porque sim. Gostei muito, não pela evidência subjectivíssima de ser dela, mas porque o Comunicado às Cegonhas do Louriçal está (mesmo) muito bem descoberto, imaginado e desenvolvido. O argumento é simples e eficacíssimo: todos os fins de Verão, certas “cegonhas” partem para o frio Norte, não para o tépido Sul. Percebe-se logo que são os emigrantes de franças e luxemburgos. O retrato imagético fica logo focado com alta economia de recursos. A mesma Leonor é neta materna de um par de “ex-cegonhas” dessas, pelo que a fusão avoenga/contemporânea está assegurada. De modo que chove em Coimbra, mas esta “cegonha” interina que não deixo de ser – está, por minutos, ao sol de dentro.

25/02/2011

Rosário Breve nº 195 - www.oribatejo.pt

Um (des)gosto

Tenho uma filha com 17 anos feitos que acredita em si mesma. É bom. Também acredita no futuro dela, ela. Já não sei se isso é tão bom. Não sei – e não sei explicar-lhe a minha ignorância.
Tenho outra menina a que pertenço também. Tem 11 anos, vai andando, não sei bem em que acredita ela, vejo-a menos vezes do que deveria.
Uma e outra são portuguesas. Crescem como juncos que o vento matiza de verde. São cidadãs deste tempo.
O problema é este tempo ser destes gajos. Deste país. Desta conjuntura.
A Leonor e a Teresa são exactamente iguais aos vossos filhos e filhas: encarnações floridas com que intentei prolongar a eternidade que o Tempo nos nega. Não o Tempo dos filósofos alemães. Não o Tempo de mármore da Grécia. Não o Tempo cartográfico das caravelas. Este Tempo.
O Tempo dos corruptos/corruptores. O Tempo dos falsos adventistas. O Tempo dos idiotas subidos a lugares de comando. O Tempo dos amigos serem para as ocasiões que fazem ladrões.
A minha Leonor e a minha Teresa foram feitas em Portugal, mas não para ele.
E os vossos filhos e as vossas filhas? Terão sido para gajos de ocasião como estes?
Gostaria de saber o que pensais disso.
Gostaria mesmo.

24/02/2011

Ideário de Coimbra - fragmentos das entradas 110 e 113


110. PRATO COM FRUTA EM BALCÃO

Coimbra, quarta-feira, 3 de Novembro de 2010

Hectares televisivos mostram a criação de ananás, tomilho, gado, cevada, tabaco, toranja. O olhar deriva ásias, áfricas, árcticos, atlântidas. É uma boa imaginação, no sentido de “produção de imagens”. A vidinha irrisória, académica, a vidinha minha. No problem. Passo à recolha de elementos gráficos do Dia:
- Assembleia da República (lepidópteros);
- Linguagem surda-muda (decotes senhoris);
- Partizan de Belgrado (dois são católicos);
- Aberto Alberto (poeta lírico, escrivão);
- Dois milhões de dólares esterlinos (Ch. Chaplin);
- Dor no joelho esquerdo (um par de botas castanhas);
- Corrupção generalizada (lata de atum, ovo cozido);
- Ruas de outros sítios que não Coimbra por onde a esta hora (9h18m) há-de ir e vir gente viva:
Rua de Coimbra (Aveiro), Largo de S. Francisco (Braga), Avenida da República (Matosinhos), Rua da Boavista (Porto), Praça do Almada (Póvoa de Varzim), Rua Nova de Santana (Viana do Castelo), Rua de Santo António (Vila Nova de Famalicão), Rua dos Combatentes da Grande Guerra (Vila Real), outra Avenida da República (Vila Nova de Gaia), Rua D. Francisco Alexandre Lobo (Viseu), Largo 5 de Outubro (Alcobaça), Avenida Dom Nunes Álvares Pereira (Almada), Rua Afonso de Albuquerque (Amadora), Praça da República (Caldas da Rainha), Passeio Carlos A. Teixeira e Largo de Camões (Cascais), Avenida Nuno Álvares (Castelo Branco), Rua da República (Figueira da Foz), Rua Batalha Reis (Guarda), Avenida Heróis de Angola (Leiria), Avenida Óscar Monteiro Torres (Lisboa), Avenida Dom Dinis (Odivelas), Avenida da Liberdade (Portalegre), Rua Serpa Pinto (Santarém), Avenida 5 de Outubro (Setúbal), Avenida General Humberto Delgado (Torres Vedras), Rua Serpa Pinto (Vila Franca de Xira), outra Avenida 5 de Outubro (Almancil), Rua de Mértola (Beja), Rua do Raimundo (Évora), Rua Vasco da Gama (Faro), Avenida 25 de Abril (Loulé), Rua Pé da Cruz (Portimão) e Avenida Arriaga (Funchal);
– Engenhoso e leve aparelho (genitália  própria);
– FA Cup (England, Colchester United);
– Woking Town (Sam Worrel, centrocampista);
– Doces & Salgados (Habanera de Cádiz);
– Dúvida razoável (filhos-da-puta em massa);
– Arroz de válvulas (Prato do Dia);
– Máquinas de engomar pastilhas (o Menino tem Tosse);
– e de novo a luz, a Gloriosa Luz de Coimbra apesar de Novembro ir já no 3.º dos seus, Dele, Trinta Dias (cristais perfumados e pluviais).

*

Não se sendo budista, é preciso recorrer à coragem ante a voragem dos dias, o canibalismo das noites e a demasiado rápida fulguração das manhãs.
Um prato com fruta sobre o balcão: que formosas jóias, caraças! Esfericidade planetária da laranja; o mamilo do limão; a dulcíssima sugestão fálica da banana; o arrazoado tumor do cacho de uvas; o beijo demorado e careca do pêssego; o rubor verde da lima em esfregaço de caipirinha; a sisudez bíblica da maçã; a pêra imitadora da silhueta da viola; o morango-boca-de-nastajsia-kinsky; a romã que te abre em segredo um rosário de rubis; o embrutecimento best-seller do melão; a nostalgia hípica da alfarroba; a caganeira certa como o Destino da ameixa; e os nossos filhos: frutos sumos da nossa vida afinal não tão geração-perdida quanto isso. Um prato com fruto sobre o balcão etc.

*

Toco devagar os teus parietais, a tua ácida
bonomia, espero que me esperes um pouco,
porém não sei se o comboio me guardará
lugar à passagem. Direitos de imagem
podem e devem ser tocados devagar
por quanto é atenta mão, na voragem rapidíssima.
Também célere é o coentro dos dias,
o almíscar mordido das punhetas
quando imaginadas as loiras senhoras mudas
que nos não amam senão com o
corpo.
É então que toco,
sem te já.

*

Isto com poemas, não vai lá, sabes.
É preciso arroz-de-frango-com-ervilhas.
Nos poemas, vá, ainda cabes.
Mas então e as filhas?

(...)
*

Há uma evidência (um fulgor) novilatino na língua da vendedeira de uvas, quase Outono. Procura este um demandador de ervas sombrias, molhadas e frias em plena Cidade. A Linha da Lousã brilha de inactivo ferro, é triste que não passe já a automotora pela tarde-noitinha de 1988. Agora a vida é mais à base de autocarros & bolos para tolos.
A minha fracção está correcta: é a de um homem. A incisão que te faço, também, é por igual correcta: trata-se de tratar bem seja não interessa quem.

*

(Aquela cativa…)

A pulcra beleza
da pueril infância
dá-nos mor distância
da nada certeza
de termos já sido
e não sermos mais
que uns quantos quais
têm perecido.

Velho verso veio
em mim renascer
que o que tem de ser
será/foi reverso
de uno universo
do mundo dum homem
velho que foi jovem
morrer de viver:

“Asas escritoras
do verso do vento”
que num só momento
são tão sedutoras
as gaivotas são
palavras de cal
céu de Portugal
vogais de cá dentro.

Ternas as florinhas
pelas pedras rompem
eu recordo d’ontem
as frescas noitinhas
e os Junhos vãos
que aos verões inflamam
homens são se amam
homens por irmãos.

Toca a minha face
dá d’água o recado
que se desvanece
o menor sentido
tenho-te mentido
tenho sido vão
não digas que não
qu’isso tenho sido.

“Asas escritoras”
etc.

*

Penso no desenho das parras, esses mapas cósmicos.
Penso no fluir geométrico das barbatanas dos peixes.
Redesenho na minha pele a maravilha espiralada
(ADN, Nebulosa, Número Fi) dos caracóis.
E de repente a minha vida tem duas luas
e outros tantos sóis.

(Orelhas translúcidas, nervosas, de coelho,
as folhas de parra rebrilham ao sol.
Passa-se à sombra, não se é nada,
mas a parra é, é-o o anil.)

113. TRANÇA DE AVÓ

Coimbra, segunda-feira, 8 de Novembro de 2010

Um morrão de cinza molhada – o Dia. A Manhã queria chá, roupa adesiva, janela fechada, um livro que pensasse por mim. Dei-lhe café, um par de cigarros, um casaco robusto e Yourcenar. A Tarde rolou, digestiva, com a melancolia aos ombros, corvo do costume de há tantos anos. A Noite imporá as suas leis frias, o seu rolar de farolins, suas vergastadas eólicas nas ramagens, seus fechamentos compulsivos de putas e de poetas em pastelarias varridas à pressa por subassalariadas em pré-euforia de encerramento.

*

Meu Tempo, meu tempo,
débil, dúctil, fútil e flébil
Tempo o nosso,
Sol no osso,
chuva na carne.
Déspota, inóspita, cada jornada,
cada fornada, cada tudo-nada.
Mau tempo, nosso meu Tempo.

*

À mesa mais recôndita do Café, quatro doutores aposentados trocam palavras, que anoto e vos reporto: calcário, argila, estado geológico, varas de aço, António Pedro Romão, consistência das terras, também em Angola, Santarém, Figueira da Foz, Covilhã, Ornelas César, turismo, caloraça, Eduardo, saídas para a Pampilhosa da Serra, Penacova, Pombal, Portimão, antes do almoço de domingo tolerar isso, Vendas Novas, luto, divertimento, à chuva, Vieira do Minho, IP3, uma ponte feita de anéis, não a que foi remendada, na Espinheira isso fizeram e tudo estava pronto, o último pilar, o terreno, um buracão, uma gamela, Obras Públicas, Solum, Junta Autónoma das Estradas, património geológico do Mondego, Lamego, estar a escrever, um rio de pessoas, um buraco insondável, a porta de ferro, contrafortes, casa de xisto, confraria, lá em cima na Estrada Nova, deitaram abaixo o viaduto, caiado alentejano, barroco nortenho, preservação como se neste País não há miolos?, levantaram sem alternativa os carris da Linha da Lousã, comunicação entre o indivíduo e a estrutura, a Islândia, irresponsabilidade e irresponsabilização, trabalhos práticos, subsídios a torto e a direito, é o único país onde se paga a quem não trabalha, trabalho arquitectónico num plano independente, mete muita impressão, melhor compreensão da expressão, sobreiros, Lisboa, Lisnave, Viana do Castelo, Chaves, preferência nacional, amigos do Diabo, agora vêm aí os Chineses, paga quem manda e manda quem paga, muitas indústrias para compensar, em vez do 25 de Abril, a maior diarreia que aconteceu a este País, era menos pior (sic) antes, tudo o que fabricavam aqui tinha para onde ir, em Angola, eu não era nada contra a independência mas o que houve foi abandono, tão bom ou igual.
Ouço-os conversar, percebo sem dificuldade que todos nós, eu relator como eles quatro, somos gente que vai ser escoada pela Inefável Água través o Ralo do Destino. É quanto posso fazer: deixar de ninguém uma memória relatora e relativa, um inventário de Novembro, um nome sem corpo dentro como David ou Ana, Silva ou Gusmão, ou esperar uma mulher que me desse um ano de vida.

*

Pode ser que cheire a naftalina
quanto recordo do amor ou da infância.
Ou que o que se me destina
tenha mais cânfora do que importância.

Pode ser que guardar um pano equivalha
a trança de avó, a folha seca paginada.
A terra a quem a trabalha,
valha a terra embora um céu de nada.

*

Notas agora para um desagravo, aliás pueril, entre o que e quem amo & o que/quem antes pelo contrário:
– cós de calças & salões de bingo à segunda-feira;
– kispos pró-chuva & lápis-de-cor;
– caspa em ombros seborreicos & água-de-malvas;
– sevilhanas atléticas como peixeiras & pó-de-talco;
– baixa da comparticipação medicamentosa & José Cid;
– manhãs feirantes & noites de domingo; 
– atentados carbonários & doenças tropicais; 
– calculadoras científicas & Rip Kirby;
– empréstimos sem água dentro & fora varandas por varrer;
– bombas de combustíveis & beijinhos rápidos;
– estar apenas vivo & ser vivo vivamente;
– tarefas & tarifários;
– muçulmanos nectarinos & botas de pano;
– doutores & engenheiros;
– nefelibatas & chapéus-de-chuva;
– as manhãs end(o)urecidas de luz & mais nada,

mais ninguém.

*

À mesma recôndita mesa a que estiveram os quatro decanos de há quarenta minutos, duas jovens palram como periquitos morenos:

– tenho o cabelo assim por causa de ti, de mim?, de uma coisa que disseste?;
– gostas?
– terceira matrícula;
– como é que foi que ofereceste ao teu pai?;
– já tinha feito;
– foi menos um dia de estudo, só estudei até às três da tarde?;
– foi no Leclerc?;
– entrei em quarta numa rotunda, ia-me espetando;
– ó Joana, eu já me conheço há tantos anos;
– é assim, agora vou ao Entroncamento dar à minha irmã a roupa que ainda me serve e a que eu já não gosto;
– o meu pai é o único homem na família;
– a falcatrua de dinheiro do Vaticano, pessoas a morrer à fome, os palacetes;
– violações e pedófilos e não sei quê;
– cheira lá tão bem;
– um jacto privado;
– aquela cena do Presidente chinês;
– o guarda que caiu do cavalo;
– o Presidente, o nosso, foi lá ter com o soldado.

Ouço-as conversar, percebo sem dificuldade que etc.

*

Sou da flora, sou da fauna
da Cidade de Coimbra.
Hei-de sê-lo enquanto ’inda
eu por bem for não mau na

vida.

*

Coimbra, uma segunda-feira desde 1111. Choveu hoje sobre as sés, as vidas, os plastificadores de documentos, os polícias, os parques, as ilhargas do Rio. Lotes de misturas de café, encomendas viárias, pessoas transitárias e transitórias, antenas nos telhados, crescimento de crianças, serviços de onco/ontologia. Cristianização e decotes ginastas. Desde 1111, dizem os voca-incunábulos.

(...)
*

Tira as caxemiras, os fandangos de gaze,
o verniz das molduras, o resto rasto gasto do
gato, a figura do pai ladrando baskervilles
na casa de usher, os copos partidos pela
serradura do chão, o morango do desejo
coalhando iogurtes e salas-de-espera,
tira o brilho do-cabelo-dele-do-cabedelo-cabelo-
-dela, as ínsuas fermentando
a joalheira tangerina e a aterrorizada
enguia girina, a cabeça do espermacete,
o cetáceo que mobydicka o santo graal
da utopia, tira-me de mim e usa véus
nas basílicas das estrelas onde a cova
é ter piedade e ser linda, velha.
Ou então: procura-me por onde cheirar
a cebola frita, a homens quase parados
na neve imaginária dos natais do Sul,
na equivalência operática que sempre-desde-
-para sempre se dá entre o desmanchar
da feira gastronómica e o da exposição
da Paula Rêgo, nesse limbo quase por
nós tocado numa ideia, num brinquedo
recordado, numa meia frase que nos
abre uma mansarda, lá em baixo a
lâmina do Rio sob uma abespinhada
cutelaria de estrelas em outro Verão,
não este e nunca mais este.

*

Isto de não ter nascido ontem não pode ser
bom para a saúde, há sempre um macaco
que te canta loas ao pavilhão cárdio-auditivo,
há sempre uma esperança quase fulminante
ante a esperança de concerto, jantar e adiante.

Penso muito nas minhas filhas quando,
ao gás falso das vielas, derivo constelando
coisas de rapaz envelhecido, as más meias
partidas pela espinha do elástico traindo
o fundamental celibatário do costume e dos poemas.

Não interessa ser ’inda só Novembro,
uma poalha de luzinhas torna já mirífica
a infância anacrónica do vulgar consumidor,
as senhoras realizam-se na cor justa do cachecol
para o velho pai, as filhas delas nem tanto,

mas. .

*

O senhor usa barba sob loção azul,
cheira a sozinho como um cão de gabardina,
tem opiniões que guarda no vão das gavetas-horas,
consome apetrechos de peixe em cozinha de lata.

A lojista espera ainda o telefonema da Venezuela,
lá se arranjou maneira de colégio cristão pago
a preço-judeu por mor da filha, o que a quilha
é esperar entre mais nada que revistas e loções azuis. .

*

Encapoeirados de centros comerciais e éticas profissionalizantes, nem nos parece já maravilhosa a claridade sem mistério com que os animais exercem a vida – isto é, com que os animais vão de si mesmos a si mesmos entre nascer e morrer. Sinto a falta dessa maravilha como uma cutilada. Há quem a recupere no amor por algo, alguém ou qualquer coisa. Eu não a recupero senão, como ainda hoje, num lance de folhas que a chuva, chegada em vento à árvore (i)número tal da Avenida Fernando Namora, ofereceu ao chão de automóveis e outros pequenos lixos. Pouquíssimos pássaros – bem mais embalagens vazias pelo chão do que pássaros. Uma toada de folha-de-Flandres na luz, um ser vespertino que.







23/02/2011

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 169 e 170

169. TEXTO LIDO EM ENCONTRO DE AMIGOS NA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE “A PEDRULHENSE”

Coimbra, sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2011

Sou um homem da Pedrulha desde Junho de 1965, embora me tenham meus pais feito nascer em Maio de 1964. A minha Mãe é que (ainda) é toda de cá: nasceu ali em baixo, ao pé da casa da mãe do Suíço, quem vai para Val’ Forno. Sou portanto daqui desde quase sempre e de certeza que para sempre. Tenho andado muitos anos por fora – sobretudo das graças de Deus. A minha filha mais velha, que se chama Leonor, começou aqui. Outros amigos se me acabaram também aqui. (Sabeis que vos estou a falar de gente como o João da Bininha, o Né 111, o meu primo Canito da Ermelinda & do Tó Cigano, o senhor Sacramento da Amarala, o senhor Elói & sua dele senhora Celeste, do Caniço do Bairro de Nossa Senhora de Fátima, de tanta gente que gente continua sendo, viva no coração de uma pessoa.) Conheço a 4 de Julho e as Convertidas. Sei Atrás-das-Eiras, a Costa, o Lagar Velho. Sou da Lameira do Saramago, hoje Rua 1.º de Maio. Andei na Escola Primária entre gente de vária, avulsa (e às vezes convulsa) vida. Em 1981 (Setembro) comecei a fumar. Tabaco, atenção. O “Clúbio” tornou-se “Disco”, por essa altura. O Massas é que mandava naquilo – se calhar, por causa das tias velhas e solteironas que lhe deixaram tudo em herança. Lembro-me das pessoas e das famílias alcunhadas – aliás gentilmente – com nomes da fauna: Canários, Pintassilgos, Cucos, Estorninho, Leão, Gato, Minhoca, Pulga, Cavalo & Burro & até Cão.
Lembro-me.
Rua do Leitão, onde o Leitito.
Do velho Rendilho à esquina de nada e de tudo.
Da minha tia Maria da Estação, que vendia bolos e solidão.
Da Muda dos tremoços, mãe do melhor jogador de futebol de sempre na Pedrulha, o Vitó.
Sou do tempo da morte do velho Mário dos David(e)s, em Setembro de 1980.
Do velho Leandro bêbado de jardins.
Da filha mais nova do senhor Veríssimo, irmã da Dulce, a quem o coração traiu.
Do irmão e da irmã do Chico Morais.
Dos tantos bebés dos Cucos.
Do Armando Torres, criança alcoolizada por divertimento.
Do Jaime Bolâmbola.
Do Boné-de-Lata & sua mulher Maria da Purificação.
E do Luisito do Diamantino Pinochet também me lembro – aqui e agora: é ele quem se lembra da Pedrulha, minha e Vossa terra.
Por causa dele aqui estou/e/estamos.
Viva a Pedrulha, viva a gente – e
uma boa noite tenhamos.

170. NOITE DE DOMINGO EM ALDEIA FEBRUÁRIA

Adões, domingo, 20 de Fevereiro de 2011

A aldeia, um cedro grande de antigo, a capela fechada, as estrelas refrigérias da noite de domingo. O silêncio do casal, a luz de azeite que mana da taberna entreaberta. A eternidade indiferente destas coisas cenárias. As nossas vidas encenadas no Inverno, februárias vidas as nossas.
Caçadores tomando um último copo. As aves mortas penduradas das ilhargas deles. O frio torna-me de louça o corpo, de vidro o que nele pensa, de pedra-pomes o que ele sente.
E o coração como um barco em terra, uma pedra em lago. E a aldeia, fermento de prata (o sono das aves, essoutra forma de canto).

20/02/2011

Ideário de Coimbra - 168


 
© FJ – s/ título – Leiria, Maio de 2010
http://mercadoengenheirosilva.blogspot.com/


168. PROMONTÓRIO VERBAL

Coimbra, quinta-feira, 17 de Fevereiro de 2011

Quem é este homem pela linha desactivada e suburbana? Que poderei ainda saber dele? Dele, a gramática pensativa pode ainda ser lúcida, arborizada?
Estas coisas demando pelo entardenoitecer, ao frio do bairro. Vou colhendo lixo do chão, reciclo o meu labirinto afinal simples, unívoco afinal. Carrego a solidão pela boca como uma espingarda de antigamente. Conheço a solidão deste homem em linha.
Urbanizo o desamparo: sou bom construtor de nadas. Desactivou a via-férrea para a Lousã, a canalhada de Lisboa. Mas – não o terei eu feito também à minha vida? É uma pergunta legítima, a deste homem pela linha.

*

Minha Mãe, está frio aqui fora de si.
As pessoas escurecem até de manhã.
Nem sei o que à Senhora diga.
O melhor é dizer-lhe estes versos.

Vejo muitos pardais e muitas árvores.
Paro muitas vezes na rua, falo sozinho
consigo.
A vida era para ter sido, não foi?

Apoio jovens no estudo da Língua Portuguesa.
Uma é a minha filha Leonor, Mãe.
A Língua Portuguesa é bonita como vós duas,
Mãe.

Um barco escuro sulca-me muito as águas
do coração, não vou mentir à Senhora.
Outras ocasiões, sou feliz ante uma laranjeira,
ando até a escrever este livro só por causa disso.

D-existir não pode ainda ser, claro que não.
O Inverno também roda, também chega a Verão.
Os joelhos já não são os de antigamente,
rangem um pouco mais ao frio


que fora de si faz, é certo.

Nem sempre laranjeiras apenas, eu também
paro a olhar as pessoas, esses pobre animais
de pista de circo reféns da economia, do sal,
da terra, das interdições morais.

Escoro-me de caligrafia, porém, Mãe,
e avanço na senda humana do ocaso
e do acaso. Investigo muito seriamente
as vias do entardenoitecer em Coimbra.

Também me acontece estar de corpo-presente
na Solum e de cabeça, digamos, na Portagem,
perto do Hotel Astória e do Rio Mondego.
A senhora sabe perfeitamente que uma pessoa

é por vezes um invólucro fragmentário.
Um avião a jacto (per)fuma de branco o céu,
agora mesmo: que estranho albatroz ele me
parece, na hora infusa e madrepérola.

Minha Mãe, nem sempre viver é coisa pouca,
eu sei. Ele há momentos em que a cabeça
assenta com perfeição no coração: e então
ela, a cabeça, é rosa em vaso, Senhora minha.

Os versos são ve(ne)nosos e arteriais.
A hora os areja de limoeiros e pardais.
Por agora, minha Mãe, é tudo.
Não lhe digo mais.

*

E quem a Deus procurara, O não encontrara
senão talvez nas aves,
que são a pontuação do caderno do céu,
ou nos operários,
que são as formigas verticais da terra.
Também acontece que as pessoas procurem
nunca encontrar-se:
nem a outras em si mesmas,
nem a si mesmas quando em outras.
Acontece isso, sim, isso sim eu sei.

*

Ele há coisas que eu sei.

*

Vejo daqui em mente um promontório que o vento escalva em frio e fúria. É perfeito para a perdição da pessoa. Antigos animais se extinguiram por esta banda da minha ideia. Alguns de entre esses bichos foram pessoas amadas, gente que amei sem solução nem continuidade. É possível que alguns me tenham amado sem pensar nisso. Agora, é de noite. Agora o coalho sideral emaranha electrificações de estrelas, nebulosas-gambiarras que nos atiram profundamente em gelo, glaciares-lâmpadas que agravam a escuridão existencial de Deus.  

Canzoada Assaltante