30/05/2008

Quatro Jornais, três crónicas

1. Rosário Breve - 54

www.oribatejo.pt

ALTERN(E)ATIVAS

A cera dos ouvidos não é para ser tirada em público, muito menos com o cabo da colherinha da bica. É por isso que (tem tudo a ver) vos peroro esta semana sobre a necessidade de as casas de alterne serem fora-de-portas da cidade. Todo o alterne. De todas as cidades.
“Alterne” é o nome técnico hodierno da prostituição como consumo mínimo, gozo médio e despesa máxima. É, também, sinónimo de “lenocínio”, com sotaque conforme ao “acordo” (ou “açorda”) ortográfico(a).
A minha tese é esta: dentro da cidade, não. A prostituição, eufemizada embora pelo léxico (que nunca pela semântica), pode ser irreprimível. Pode. E é-o, de facto, há milénios sem conto. Mas pode ser reprimida, também: dentro da cidade, quero eu dizer. Façam a coisa em vivendas de pinhal, em sobrelojas de gasolineiras, em motéis psico-hitchcockianos: mas dentro da cidade, não.
Nem é pela salvaguarda moral das crianças.
Nem é pelo vão atiçar dos velhinhos.
Nem é pelo estremecido frenesim dos gatos.
Não.
É por isto: moro no centro histórico de um burgo muito dado, por fora, a êxtases clérico-pastorícios – mas, por dentro, é casa de alterne porta-sim-porta-também. Aqui é a minha casa. Ali é uma casa de alterne. Resultado: bum-bum de colunas de som até às seis da manhã, hora a que as catorze senhoras (todas esposas do mesmo Sr. Lenocínio da Silva) debandam arrotando em voz alta miríades de bolhinhas de espumante manhoso rumo a um pequeno-almoço de bifanas com minis pretas traçadas de refrigerante de guaraná para mata-saudádji.
Ora, a alternativa, minha, seria morar eu fora-de-portas. Mas isso não pode ser por causa do(s) preço(s) do gasóleo. Como eu não posso, têm de ser as meninas a poder.
Sim. Sim, porque triste não é haver alterne. Triste é não haver, p’ra mim, altern(e)ativa. Nem altern(e)ativa, nem colherinha de café.

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Contra os Canhões – 9

www.regiaodeleiria.pt

BARCO (IM)POSSÍVEL


Se puder, não torno a meter-me num avião.
Se não puder, talvez seja bom sinal, coisa de me pagarem para ir a algum lado fazer alguma coisa irrelevante, como tudo o que faço.
Tenho cagaço de me render àquelas descomunais geringonças imitadoras de pássaros. Até hoje, só me aconteceu seis vezes – e este “só” é uma eternidade muito só. Custa-me muito, isso de me render às mãos dos deuses fardados que são o piloto e o navegador. Custa-me menos, é verdade, sofrer a graça algodoada das hospedeiras: casaria com todas e qualquer delas que me trouxessem, como trouxeram seis vezes, comida, bebidas e sorrisos da mais fina gaze labial. Casaria, sim, apesar de suspeitar de cornos internacionais em todos os aeroportos do mundo delas.
Um dia destes, se calhar, tenho de ir ao Brasil. Se puder, vou de barco. Não devo poder. Sem ser nas palavras, viajo muito pouco. Cada vez mais, viajo o menos que posso. Tenho uma mulher e uma gata em casa, não preciso de quase mais nada. Viajo para ver as minhas filhas, uma de cada mulher anterior, uma de cada vez, de vez em quando. Quando vou ver a minha Mãe, é sempre como apanhar o avião do Tempo. Ela nasceu em 1924, quatro séculos exactos depois de Camões, Fernando Pessoa tinha ainda 11 anos para cumprir a pena afinal não perpétua de viver.
Digo-vos a verdade: prefiro voar em casa sobrevoando datas: 1900 – morte do Eça; 1933 – nascimento do Ruy Belo; 1917 – nascimento do meu Pai e triunfo dos Sovietes; 1944 – em Junho, o Dia D; 1945 – em Agosto (Hiroshima, Nagasaki), as Horas H; 1993 e 2000; as minhas filhas nascem-me: e em 2005, as minhas mulher e gata.
No meio, entristeço civilizadamente em cafés. Vou-me exilando da infância, cuja vigorosa pureza tento em vão resgatar em versos e crónicas de homem aterrado até por etimologia, peão, podógrafo e rasante.
A verdade é que só escrevi até hoje uma coisa de jeito: foi quando me assaltou a evidência de, em vida, já termos morrido muitas vezes. Como assim? Assim: morremos já todos em todos os sítios onde estivemos e a que não voltaremos.
Se puder, aproveitarei o Brasil para renascer, no caso de não poder lá não ir, a não ser que de barco.

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Crónica Mundial – 4 e Bairro Nosso – 2

www.jornaldocentro.pt e www.jornaldocentro.pt
CRÓNICA DECRESCENTE

Sou finalmente, muito a sério, parte de uma maioria.
Toda a vida tenho sido minoritário. Mas agora, finalmente, não. Não sou. Finalmente. Agora, também já sou português de 3ª, cidadão de 2ª e queixinhas de 1ª.
Queixo-me a quase todos de quase tudo: do acne tardio que me retarda o barbear e me alonga o coçar das costas, das obscenidades-SMS que ouço nas pastelarias, da vulgaríssima vulgata da ignorância, da televisão em geral e dos canais em particular, das velhas que querem parecer novas à força e à custa de baldadas de creme e de talochadas de rímel, dos jovens que não-lêem-não-sabem-nem-querem-saber, dos polícias que amodorram 30 anos uma pré-reforma para um futuro ilusório de algarve-time-sharing ou cancro-sem-mais-time, das pombas do Rossio de Viseu que me tratam por tu quando lhes levo trinca de arroz mas por você quando é só pão que lhes posso dar.
A vida é tão parecida com esta crónica, por outro e por este lados, que me faz medo não me parecer maior mas maioritário. Chove muito, nesta primavera falsa de fim de maio, faz sol um bocadito enquanto faz, nubla-se tudo: regem-se as maiorias, sempre e aliás, pelo tempo que não posso transformar.
De qualquer modo, isto deixo dito: pertenço, finalmente, a uma insonsa (e sonsa) maioria que é o sal da terra, o lírio do campo, a bandeirinha republicana à monárquica janela, o desemprego maciço e massivo, o custo da vida acrescido ao custo de viver.
O preço de viver só implica a tal minha (nossa) maioria: todos somos sobreviventes, até notícia em contrário. Mas nem isso nos tornará, afinal menores e minoritários, notícia: pois que, de verdade e em verdade, somos todos de terceira (3ª). E de segunda (2ª). De primeira, hum, julgo que não. Nunca mais, como sempre.

29/05/2008

VAMOS COM CALMA - uma canção

Viseu, tarde de 28 de Maio de 2008

Pelos campos de minh’alma
vejo agora assomar
andores d’andorinha calma
brancos negros como o mar.

Tudo em volta é perfeito
como minha vida não.
Poesia sai do peito
deixa em paz o coração.

É singelo e sem gelo
quanto pela língua vivo
que sem ela sequer vivo
sou ou estou horrendo ou belo.

É uma paragem no tempo
viver tão antes da vida
que ao nascer nos é devida
uma passagem no tempo.

Nossos filhos como estão?
Qual é deles a condição?
Quão amamos quão perdemos?
Nados mortos mui vivemos.

Pelos campos de minh’alma
vejo agora assomar
andores d’andorinha calma
brancos negros como o mar.

28/05/2008

Isto Era

Viseu, manhã de 28 de Maio de 2008

o senhor maurício diz que isto era matá-los todos
o senhor arménio não concorda
diz que
é escusado
que
tarde ou cedo
todos morrem e todos morremos
o senhor barbosa ri-se a bom rir dos dois
diz que
escusado é concordar ou discordar disto ou daquilo
seja do que for
mas também
o senhor barbosa é homem para passar a vida no café
a dizer mal dos que
passam a vida no café
eu costumo ver os três um de cada vez
nunca vi os três juntos
sei isto porque
mo disseram
eu não sei
estas coisas são o que são
agora matar tudo e todos também não estou a ver
isto é.

22/05/2008

A partir desta semana, crónicas passam a 4

1. Rosário Breve - 53
CRÓNICA ALEXANDRINA

O senhor Alexandrino Nóbrega anda um bocado chateado com a Pátria. Ferroviário (mal) reformado, enfurece-se sozinho ao balcão do café que abre às seis da manhã. Amargura-o muito ter de fumar de novo, como no princípio da mocidade, mata-ratos de enrolar, dada a sanha preçária antitabágica em curso. O senhor Alexandrino Nóbrega tem muitas saudades do tempo em que, nas cozinhas, havia uma gaveta só para o bacalhau, esse peixe inventado pelos Portugueses que, como os Portugueses, corre sério risco de extinção. Antigo sindicalista vermelho, o senhor Alexandrino Nóbrega já por mais de duas vezes se apanhou a si mesmo elogiando o Salazar. Eu tenho muita pena do senhor Alexandrino Nóbrega porque, um dia destes, eu vou ser e estar igualzinho a ele.
Já ando, aliás, a aprender a enrolar mata-ratos, mas fico danado quando, no quiosque, me vendem o livrinho das mortalhas com um pisca-olhos de comparsa de ganzas. E logo a mim, que só me drogo com bagaço. Também ando um bocado chateado com a Pátria, sobretudo por causa da mania que a Pátria tem de premiar a roubalheira e de punir a honradez. Vale-me que gosto muito mais de bacalhau que do Salazar, embora fisicamente tão parecidos.
Amanhã, às seis e picos da manhã, vou estar ao balcão do café ao lado do senhor Alexandrino Nóbrega. Vamos ser os dois contra o resto da Pátria. Até às sete, dizemos mal da Pátria. Depois das sete, dizemos bem do Scolari e mal do Pinto da Costa. E depois gastamos o resto da manhã a garantir um ao outro que desta é que vai ser: sim, que desta é que a Pátria, a bem da Nação, vai ganhar o Euro. Isto se lá fora não fizerem à Pátria a roubalheira que a Pátria faz aos Portugueses, a mim e ao senhor Alexandrino Nóbrega.
Vai ser uma ganza, meu, tás-a-ver, Alexandrino, alto flash, ya.
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2. Crónica Mundial - 4
(www.jornaldocentro.pt)

VISEU NÃO É NA GRÉCIA

Peço-vos perdão, mas não ando especialmente entusiasmado com o estágio da Selecção em Viseu. Ainda se o guarda-redes fosse o Vítor Damas… Agora, com estes rapazes que perderam duas vezes contra si mesmos através dos gregos, não. Acho-lhes graça, claro, hoje em dia eles até já nem falam como os polícias de antigamente. Digo-o assim: não me sinto representado por eles. É caturrice minha, eu sei, mas não, não me sinto representado por eles. Nem em Viseu, agora, nem na Suíça/Áustria. Ainda se o centro-campista fosse o Coluna…
Preocupa-me mais a escolaridade do que a “scolaridade”. Peço-vos perdão por isso.
Peço-vos perdão porque vós, como eu, não fostes convocados para nada. Nem para paraísos de hotel, nem para gloríolas pseudopátrias, nem para saúde-educação-justiça gratuitas. Eu não fui. Vós também o não fostes. Ainda se, para a linha mais avançada, tivessem convocado o Jordão e o Eusébio…
Moro como vós em Viseu. Habito, vivo, respiro, trabalho por estas viriáticas fragas. Sei os nomes dos cafés. Sei os nomes das ruas. Dou e recebo os bons-dias nos sítios costumeiros da minha rotina. Falo (e escrevo) com toda a minha escolaridade. Sou talvez feliz, entre o Largo do Pintor Gata e o Largo do Major Teles. Mas não vou à bola com toda a bola que me queiram fazer engolir em vez de pão (olha o preço do pão), em vez de arroz (olha o preço do arroz), em vez de gasóleo (olha o preço do gasóleo).
Sou, sim, apenas um dos tristes que não aceitam que lhes/nos chamem nem parvos nem alegres. Ainda se me chamassem Carlos Lopes, que nunca jogou à bola mas foi o maior desportista português de sempre e até é de Vildemoinhos…
Agora, ver-me grego é que não.
Não.
Nunca.
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Contra os Canhões - 8

(www.regiaodeleiria.pt)
A TAÇA É MINHA

Esta semana, fui, por assim dizer, o Rei Leão de uma casa sem filhos: como benfiquista, ganhei dois-zero ao Porto, através do Sporting, na final da Taça de Portugal.
Quero com isto dizer que, durante 120 minutos, não me inquietei com o preço abusivo do arroz, nem o com o preço especulativo do gasóleo, nem com os “romances” do Miguel Paulo José Coelho Sousa Tavares Rodrigues dos Santos. Sim: durante 120 minutos, ganhei ao Porto e fui feliz num café chamado Paris.
Quarentão, cervejómano, inchado, rubicundo e grosso, senti-me felicíssimo contra o resto do mundo. O resto do mundo, isto é: o Porto.
Quando, há muitos muitos muitos muitos anos, em Leiria, ia almoçar ao Monte Carlo, do falecido senhor Salvador, eu era mais sportinguista do que um lagarto carimbado a sol num muro de cal. Então, eu tinha dinheiro para a refeição, eu mandava bocas, eu já era feliz na altura. Feliz por fora, também vo-lo digo – mas, por dentro, benfiquista como meu santo Pai, o que me garantia, já então, como hoje ainda, toda a infelicidadezita portátil dos tristes que nunca são campeões de tribunal nem amantes de alternadeiras.
O meu onde de hoje já não se chama Leiria. Fiz duas filhas aí perto, depois vim-me embora para outro onde, sujeito a outro quando. Mas também vos digo, deveras e de facto, que nunca parti, senhoras, senhores, da felicidade: esta semana, ganhei dois-zero ao Porto, ao resto do mundo, ao arroz carolino da Carolina e ao gasóleo.
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Bairro Nosso - 1


NOSSA PÁTRIA MINHA

Sou um rapaz da área norte de Coimbra. Cresci na zona industrial da Pedrulha (do Campo, não confundir com a Pedrulha do Monte, na Mealhada). A minha Pedrulha é agora apenas zona, dada a devastação empresarial sofrida pela economia coimbrã. Caso atrás de caso, tudo abre falência (verdadeira ou manhosa), tudo fecha as portas. Operários às centenas (muitos com mais de 30 anos de casa) vêem-se atirados sem rede ao frio horror do desemprego.
Quando lá vou ver a minha Mãe, choca-me sempre a galeria dos edifícios fabris em ruínas. Sei perfeitamente que por trás de tudo está a ganância empreiteira das imobiliárias, que, em conluio com “democracia” autárquica, nunca gostaram de pessoas, só de fregueses tê-zero que lhes comprem as gaiolas de betão nas estéreis e dormitórias urbanizações da modernidade. Logo que posso, venho-me embora dali, para desgosto da minha Mãe, que preferia que eu tivesse 12 e não 44 anos, de modo a viver com ela na casa de operário que o meu saudoso Pai sustentou, febril e fabrilmente, com mais de meio século de trabalho na pintura cerâmica.
Se vos pareço amargo, não duvideis da parecença: ando amargo com isto a que, à falta de melhor palavra, chamamos Pátria. Suponho que a vossa Pátria é a mesma que a minha, mas não posso garanti-lo. Porquê? Porque a minha Pátria é a da selvajaria “liberal” do preço dos combustíveis, a do desemprego multitudinário, a da cavalar ignorância linguística, a da parasitária cáfila de assessores, a da arrogância ministerial, a das multimilionárias negociatas com submarinos que nos levem ao fundo e com comboios que em alta velocidade nos levem a nenhures, a de empresários desonestos que vêem na honradez o oitavo pecado mortal da alma.
Lamento, mas a minha Pátria não é a que o Scolari nos mandou pendurar das janelas e das varandas. A minha Pátria, de facto e deveras, é a dos meus 12 anos, quando as fábricas trabalhavam com gente dentro.
Garanto-vos que é triste, ter uma Pátria do século passado.

21/05/2008

ORATÓRIA PENTAGRAMÁTICA DO ANDRÓPODE




Cabeça do Homem de Tollund


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Esta Oratória foi escrita em Viseu nas manhãs de 20 e de 21 de Maio de 2008



I. O ANDRÓPODE DAVID ANJO LARANJEIRA MENOS PASSEIA DO QUE PASSA PELA CIDADE DE SEU EXÍLIO E FALA PARA CLARA GENCIANA ANDRADE ex-LARANJEIRA

Sou ainda este homem cujo sujo de lágrimas rosto
não pôde nem pode, do teu, imitar-se, nem a ti
imitar-te por arte de desistir-te, de desistir
de ter-te, por sorte. Mas nem o esquecimento
que de mim te furte me há-de de ti tirar-te.
Segue pois comigo por estas exiladas ruas,
ao sol febril que à cidade torna dúctil e, digamos,
útil em expediente manhã de terça-feira,
em qualquer mês de qualquer ano, sempre este
derradeiro, aquele sempre novembro. Lembro
em todas as nenhumas mulheres a única alguma
que tive e tu foste. Se hoje, soro de estéril aguadilha,
choro leite em comuns valas de prostitutas,
essas nocturnas aves tristes e turvas e astutas,
a teu dentro amo adentro elas, não a elas, a quem
pago, mas a ti, que me não recebes.
Saberás bem que digo, quem digo e de que falo,
tu percebes.
Evanesço para desaparecer de ser, de ser-me inerme
e enorme na anã macrocefalia do meu coração
de ti povoado por indirecta oblíqua amarração.
Onde és, quando estás, com que vermes dormes ou dormirás
em vez de comigo seres estando dormindo acordada?
Responderes-me o não quero, pois que tudo quero seja nada,
como o é já tudo o que me hei no que há, em
exilada cidade.
Na minha idade, só da última infância, a velhice,
terei instância e constância: menino me retornarei,
idosa senil criança, em impuro poluto gozo de minha baba,
meu muco, meu ureico humor sifilítico
e artrítico. Também não cederei a nenhuma outra poesia
que à da movente e comovida hipocondria
dos como eu cornúpetos de córnea dor e nostalgia.
Vivo mais só do que morrerei, Clara, minha escura
luz na de pez vida minha sem ti minha.
E eu, posto que não teu, teu para sempre
na morte como na vida que, mais que viva, morta
em mim sem ti, por aqui, se cumpre.

II. TRATADO BREVE DE LUMINOTECNIA

A luz deste fim de manhã é pura louça
azul vidrada no meu mais castanho olhar:
conduz a luz (e qu’aqui ninguém nos ouça)
à clarividente vidência, Clara, do passar

só entre gentes sós que, como eu e tu e vós,
mais não podem do que cegar
perante a pura louça a quebrar
azuis águas, vítreas mágoas de todos nós.

Que bela luz! Que manhã belíssima!
Onde estaremos amanhã? Quem a nós nos conduz?
A afim luz desta manhã, enfim puríssima,
quanto nos cega de azulação alvíssima?
Quanta sombra somos? E quanta luz?

III. QUANDO EU TE FOR ONTEM

Um destes amanhãs não serei a tua manhã.
Reserva um pouco de noite no teu coração
para o ontem em que me te tornei.
Mas baila comigo um pouco ainda nos salões
de nossos pobres sábados em recreativas associações.
Frita ainda comigo a posta do red-fish
com arroz de espigos – e sejamos amigos,
além de homem & mulher perseguidos pela vida,
que mais viela nos foi sempre do que avenida.
O que me amas é quanto me chamas
pelo secreto nome de um gajo finalmente chamado
a nome de amado.
Gosto das tuas pequenas coisas espalhando a nossa casa
pelos continentes das nossas mais instantes horas.
Se pudesse não vestir-me de preto, teria uma camisa verde,
tão verde quão certos azuis de certas praias coralinas.
Regabofes, torrões-de-alicante, carrosséis, meninos & meninas
feitos & feitas por nossos corpos adentro um do outro, próprios.
Muito império exerce sobre um homem uma mulher:
falo da argentina qualidade das femininas unhas,
o nacarado carácter dos dedos preênseis,
o têxtil que pestanas aveluda,
o róseo morango do mamilo:
e da tonelada do nada de pensar pesado a quilo.
Não te serei importante ontem, mas amanhã
na tua infantil velhice:
Maria, Rosa, Clara, Dulce,
Teresa, Graça, Conceição, Alice.

IV. O ANDRÓPODE PÁRA PARA VER OS PARDAIS PRIMAVERANDO A BEIR’ÁGUA DO RIO DA EXILADA CIDADE

À beir’água já pipilam as breves aves portuguesas
que a primavera apardalam de castanhas asas.
Já o sol nos doura as vidas e as casas:
e nem tão certas parecem nossas mesmas incertezas.

É primavera. É quase junho. Pode até ser q’a’legria
nos roube à noite, nos ganhe ao dia.
Pode até ser q’a’legria
nos roube à noite, nos ganhe ao dia.

Nad’importa a vida, não morreremos cedo.
Tarde nos foi ter nascido, de alheio amor gerados.
Mas, já qu’aqui’stamos, não tenhamos medo.
Partidos todos seremos, nem todos porém chegados.

V. ENTRE HOMENS IGUAIS, NÃO DIFERE O ANDRÓPODE PASSANTE SENÃO POR COISAS QUE QUISERA DELA, CLARA, FOSSEM IGUAIS: OU DE TERESA

Nenhum dos teus homens poderá amar-te
sem o meu coração de ti utente.
Sem ele equivalerás à demais gente
feminina por muitos homens amada,

não por mim.

Por aqui, sem ti, m’evanesço e desapareço
entre homens a mim iguais
excepto na dor por ti, ex-minha de ainda-mim.
Laranjeira foste, ou te chamaram,
de que raro oiro de fruto raro
pude colher e acolher no plenilúnio claro
de meu escuro sol futuro
– agora.

Passo e passarei e decerto passei já
além do bojador do adamastor do amor
nada de ti me revirá
senão o tudo de ti que me perdi.

Não determino sequer
como pode um único homem perder uma única mulher.

Sou igual e ferido e diferido
no que
homem
tenho sofrido.

Agora olho colho e recolho das árvores o rio vertical
perfeita metáfora da água vegetal
que o animal Tempo é.
Pela cidade
desmontanho-me
de praias cuja claridade é glauca e louca
a cidade de alheias mulheres que nunca minhas quis
por nenhuma seres tu
nenhuma sequer
mulher matriz de todo o filho que todo o homem
que ama
na rua como na cama
se volve.

Nada te me devolve.
Embarco agora na corrente igualdade da
igual correnteza:
Maria, Rosa, Clara, Dulce,
Graça, Conceição, Alice, Teresa.

20/05/2008

XVII POEMAS PARA MAIS UMA NOITE UM DIA MENOS





Viseu, 15, 18 e 19 de Maio de 2008



I

Sou o gajo que pensa em ti à mesa do canto.
A tua nudez muito branca embranquece-me as têmporas.
Entre dois dedos esquerdos tremo a tocha olímpica do cigarro.
Há sinais escritos nas paredes, repito-mos na cabeça.
Há mais de quarenta anos que não falo com alguém.
Transporto uma monarquia fechada no coração.
Acumulo visões de pátios com anjos de pedra também nus.
Sei: nascemos para ser bronze e morremos de lata.
Ninguém acredita que eu levite pelas ruas vazias:
’inda esta manhã assim foi.
Vejo-nos escurecer muito, oxidados de chuva entr’árvores.
Caudaloso e turvo é o rio da minha monarquia nascido.
A tua mudez muito branca embranquece-me as têmporas.
Penso em ti, dou-te rosas pluviais, pão às pombas.
Conheço uma loja com tratamento para o vinho,
nunca lá entrei.
Corre o mês de maio – e eu parado em novembro.
O ar é frio, o ferro dorme na boca.
Tenho alguns dentes que se me estragaram como alguns dias.
Um dia destes vão telefonar-te,
dizer-te que eu
finalmente.

II

Uma vez, antes de ti, eu amava uma pessoa muito poderosa.
Não era uma mulher, não era um homem: era
uma pessoa muito poderosa, era
um cão amarelo.

Guardo em casa todas as ruas.
Guardo em casa todas as ruas
por que o meu corpo se prometeu
ao teu.

Este não é um poema erótico.
Este não é um poema herético.
Acredito no deus dos pássaros, no deus imanente
ao pão da gente.
O amor dos nossos pais não é foder.
O meu por ti também não.

Sou o rapaz envelhebranquecido à mesa do canto.
Chove neste caderno como na rua.

Dizer-me que tu
inicialmente.

III

Da montanha atirei o sermão da minha sombra.
A minha sombra é ser mão que escreve.
Estou sentado dentro da minha cabeça
a um canto.

Parto as minhas unhas com este vidro.
Conheço todos os animais.
Todos os animais nos olham nos olhos.
Eles garantem-nos a temperança, a liquidez,
a liquidação do tempo.

Poemas são linhas que, ao contrário da vida,
não chegam ao fim
da linha.

A tristeza é uma forma de profissionalismo:
perder a vida é ganhá-la.

A minha Irmã vestida de verde à janela:
recordo a um canto.

Estou na montanha embora isto seja um bar.
Não estou no mar embora isto seja um barco.

IV

A minha Irmã vestida de verde à janela.
A brisa interior do coração dela dando leve nos cortinados.
Os retratos por toda a casa escrevendo rostos.
Os livros rangiam coisas de cidades estrangeiras.
Eu não sabia ler ainda, eu lia a minha Irmã.
Eu ainda não ia morrer.
O Campo do Bolão aluminiava-se das cheias de inverno:
como muitas águas de muitos olhos.
O Monte do Picoto cheirava a espargos e a musgo.
Eu era um cão amarelo muito poderoso.
Depois aprendi a ler e a vida estragou-se-me como um dente.
Escrever estas mortalidades banais tornou-se-me imperioso.
Súbito súbdito da monarquia do meu coração me volvi
e não voltei.
Moro numa casa cega, tenho de versejar janelas,
não é um trabalho fácil, querida.
A alegria é-me bissexta, entristecem-me sempre
os vintinoves de fevereiro.
Quando amo é que é bom.
A Gracita traz nozes e presunto e maçãs para a mesa,
o Carlos trata por tu a matéria da vida,
os filhos deles ajardinam de risos a hora pura,
eu gosto de nozes, de presunto, de maçãs.
A minha Irmã é a maçã verde à janela.

V

Os nossos deuses não frequentam os urinóis públicos.
Os nossos deuses são muito mais desumanos do que nós.
Gostam de receber em géneros: rosas, velas, imprecações,
agonias e aflições – mas nada nos descontam para
nossas aposentações.
Os nossos deuses são tão filhos-da-puta ou mais
do que alguns de nós.
Eu, como vós, venero os nossos deuses.
Em vão frequento, e publico, os urinóis:
só vejo homens de murchas pilas urinando os pés
aos nossos deuses.

VI

Gosto muito de ver o primeiro-ministro na televisão
a ser feliz sozinho.
A felicidade é uma coisa que se usa contra todos os outros
– e todos os ministros, primeiros, segundos ou de terceira categoria,
são do contra
a gente.
Gosto de conferir a arrogância tecnológica dele,
a evidência de nunca ter, ele, lido um poema
de Sá de Miranda, uma deixa de Santareno,
um instante autognóstico de Pessoa
fixado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.
Não tenho problema algum com o nosso primeiro.
Até gosto dele quando ele é feliz sozinho.
Quem me dera ser como ele é, sozinho.
Eu não deveria ser sozinho contra
mim,
mas sou – por causa do
Sá de Miranda, do
Santareno, do
Georg Rudolf Lind.

VII

Na minha terra
o vento respira árvores
o rio bebe areia
as mãos não tocam as mãos
os cães atropelam os carros
os gatos envenenam a solidão
os anos tornam-se fragas pessoais.

Na minha terra
as crianças reduzem as horas a instantes
as crianças rosificam orvalhos a diamantes
as crianças são imortais enquanto não homens não mulheres
as grafonolas tocam valsas adoçadas da cor do chá
e a solidão da pessoa é a pessoa que é e que há
e a solidão que há é a pessoa que é.

Na minha terra
nem todo o Amor de Mãe é Angola-1967
nem todo o pai sobe a ser Pai
o pessegueiro é a capital do pátio é a capital da infância
e entre o amor e o amar
garant-t’ eu
vai uma enorme distância.

Na minha terra
a minha boca enche-se da minha terra
os meus olhos são da minha terra cheios
pombas zunem chumbo como eclesiásticas entidades
cães tutanam o osso nosso de cada dia
gatos sonham com andorinhas
e todas as terras são nossas e minhas.

Na minha terra
o sal dos homens é de lírios no campo
molhados de água de olhos olhados pela terra
que como rio os beberá de areia
dando árvores o vento como leves cortinas
apartadas por minha Irmã
de intacto hímen no coração.

Na minha terra
há muita virgindade à solta
como cavalos feitos de couro e de vento
como árvores respiratórias bebendo a areia do tempo
e de versos
na minha terra
há muitos versos muitas respirações sós.

A minha terra
é feita de todas as terras a que nunca fui
onde nunca nasci
eu sou tão da minha terra como um cacho de espargos
um olho de musgo
a cor amarela de um cão
a cor do meu Pai a partir dos olhos

na nossa terra
esta única terra.

VIII

Acho mais piada a morrer
do que a perder um irmão.
Perder sempre foi pior um irmão
do que ser.
Eu acho piada a morrer.

IX

Toca devagar o meu peito evanescente:
sou feito de vaporizações de fontes, como toda a gente.
Eu, desculpa, não fodo: nunca fodi.
Já amei um pouco, um pouco já cri.
Agora, toca um pouco o meu peito devagar
evanescente.
Eu sou este tu.
Eu sou toda a gente.

X

Hoje não vou morrer tanto como ontem.
Tenho um disco da Annie Lennox.
Marés afectuosas marulham-me o coração.
E tenho dois euros no bolso da chave de casa.

Eu sei fazer quadras quase populares.
Venero os meus santinhos, bebo a minha ginjinha.
A minha sobrinha conhece-me os olhos.
Conheço-a eu de trigo ao sol: é ela muito ouro.

Tenho dois euros e sou riquíssimo.
Uma auréola furta-cores nimba-me a cabeça romana.
Não dou troco a trocos.
Amo meia-dúzia de gajos e gajas, sou feliz.

Hoje não vou morrer tanto.

XI

O céu é cinza, são azuis as pessoas.
Tenho a vida entre dois dedos esquerdos, fumo-a olimpicamente.
Conheço a merda, conheço a rejeição.
Sou um homem perante um rio – e rio dentro.

XII

A montanha tinha hoje pelo entardenoitecer um duplo poderoso: o castelo de nuvens fumando chumbo muito mais do que ela alto e leve.
Todo o caminho subia entre arvoredos de verde líquido, cuja visão humedece os olhos de involuntária comoção.
Usei quanto menos pude o coração.

Devo ter procedido bem, posto que, posto o sol, o arrebol me arredorizou o sossego.
Não digo a tranquilidade, digo o sossego, essa quietude dos tristes ante montanhas, perante nuvens, diante de líquido arvoredo.

Posso dizer isto, agora.

Descontando meia hora solar, pela tarde, todo o dia amanheceu como acabou: o ar cor da água de sabão, perigoso cromo que leva ao abuso do coração.
Ainda assim, não abusei, fui prosaico.
De cada minuto fiz um mosaico.
Vivi sem sombra, não havia sol, nada me duplicava senão a modernice d’armar ao arcaico.

A noite chegou carregada de rubis traseiros de automóveis.
Uma praça vazia chamou-me pelo nome, eu fui.
Havia uma fonte cantando, esvaziando-se toda de música para peixes nenhuns.
Distingui perfeitamente a matéria da vida na antimatéria das águas que sem pés tudo correm e sem mãos tudo tocam e sem olhos tudo vêem.
Nisto, tocou o sino de alguma igreja feita de giz no negro pulsado a vermelho de rubis traseiros.

Tiro-me do silêncio, usando não o coração mas a mão direita:

posso fazê-lo, agora.

Entro convosco na maior noite, convosco saio do dia menos.
Isto não tem mal, isto não tem bem.
Somamos agoras para um nunca perfeito:
nunca mais jamais é menos que nunca.

XIII

Conheço por fora o homem dos cães de todas as ruas
de todas as cidades do nosso país de homens
algemados a cães em suas deles
homens e cães
eternas não ternas noites.

Do outro lado do olhar mulheres vêem passar
cães e homens enquanto fumam esperando homens
que à cão as devorem por trás nas noites
de aluguer.

Conheço por fora todo o cão todo o homem toda a mulher.

XIV

Faço poucas vezes a barba para não andar sempre
com pena de mim.
Prefiro de longe as quartas-feiras europeias,
como é costume chamar às quartas-feiras portuguesas
em cafés com sport-tv e minis duras e frias
tais diamantes.

Ponho um disco da Annie Lennox e deixo-me
ir na imaginação do marinheiro com uma mulher
como ela
cantando na espera dele,
que eu nunca sou,
faça ou não faça,
qual marinheiro,
poucas vezes a barba.

XV

Fui já a vários sítios de si mesmos vários
cada vez que mais o tempo os difere do que foram
e os fere do que serão.

Fui já a avenidas frias descoloridas
a que presidiam gares rodoviárias e putas várias
as mesmas sempre afinal repetidas
entre rodoviárias e avenidas.

Fui já muitas vezes a casas cuja capital é o gato
o retrato do falecido sobre naperon
a votiva vela ao Irmão Doutor Sousa Martins
o estuque do tecto rendado a querubins
e um olor de sacristia que bafo de cozinha
me tornava o ter lá ido a mor coisa comezinha.

Fui já à Noruega e à Argentina em livros
que não recordo porque leio para não escrever para não viver
não para mais saber do que sabia já
quando lá fui
(tenho de falar disto ao Rui).

Fui já tudo aonde nunca fui.
Mas nunca fui outro homem:
nem quand’agora menos moço
nem quand’outrora mais jovem.

XVI

Lembrar é saber amanhã.
Também não há-de ser agora.

XVII

Rouba-me o pensamento a visibilidade de homem natural.
Não nobiliárquico, sequer autárquico, de Portugal infante,
é-me mais do que a boca o olhar falante.

De viço o mais normal, nunc’acima da média,
tenho saídas da vida como entradas de enciclopédia.
No mais, não menos que os os demais. Tal e qual.


16/05/2008

Mais 3 crónicas

Às sextas, saem cronicanços, aos 3 de cada vez.

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1. Rosário Breve - 52
(http://www.oribatejo.pt/)


UM ANO

Ando aqui a engonhar-vos a paciência há um ano com crónicas pseudopoéticas que ao mais anjo rasam a paciência e ao mais santo arrasam a pachorra. Ando. Quando, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou um gajo sozinho, vestido de preto e sentado no café a ver televisão.
Confesso que ainda tiro do saco o meu Sófocles, o meu Rilke, o meu Greene e o meu Ruy Belo (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978). Tiro-os do saco e deponho-os no mármore frio e redondo da mesa do café. Visto de lado, pareço uma livraria. De frente, um alfarrabista. De costas, nem vos conto.
Mas, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou o gajo que segue, pedalada a pedalada, na televisão pública, a velocipédidiótica peregrinação ciclista do Jorge Gabriel a Fátima. Isso e a morte da namorada do João Malheiro. Isso e as pregas geodésicas do pescoço mais cartográfico do nosso pequeno e não admirável mundo, Lili Caneças. Isso e os assomos de dignidade, assim de repente, da Merchè Romero. Isso e o Diogo Infante e a Catarina Furtado, coitado do pai Joaquim, que até é jornalista a sério. Isso e a bicicleta do lustral Jorge Gabriel, neto mai-lindo das avós do mundo todo, Lili Caneças inclusa.
Às vezes, tenho tanta pena de mim próprio e mesmo, mas tanta, que até me apetece ir viver, sei lá, para Santarém.
Lembro-me do Ájax sofocliano. Do Brigge rilkeano. Do homem de palavra(s) beliano (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978), de que aqui falaremos, juro, em Agosto, neste mesmo jornal.
Sou o gajo vestido de preto num café ante a televisão. Catarinofurtado-me. Vimaranensobarbarizo-me. Só não quero que as minhas duas filhas resultem naquilo de bicicleta. Eu não tenho bicicleta. Tenho todo o pundonor, estranha e quase não portuguesa palavra.
Tenho rugas no pescoço. Mas há um ano, faz hoje, que jogo nO Ribatejo, jornal da cidade do União de Santarém. E o ex-gajo da Romero, o Cristiano Ronaldo, joga apenas no União de Manchester.
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2. Crónica Mundial - 2
PASSEIO E PASSO E FICO

Passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu.
O meu trabalho é recolher olhos. Deveria dizer, bem mais correctamente, recolher olhares. Então, digo: passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu, o meu trabalho é recolher olhares.
No cemitério da cidade, recolhi o olhar de Luís Miguel Nava. Recolhi também os do talhão militar, esses olhares finalmente em paz depois da maior guerra – ter vivido.
No Café Paris, ao cabo do mundo e ao cabo de Viseu, brasileirei instantes migratórios como andorinhas, não sabendo eu, como nunca sei, se há ou não andorinhas no Brasil.
No Rossio, acolhi-me à grácil e lábil rataria das pombas munícipes, migando o columbófilo pão que me sobra dos jantares com a minha senhora.
Na Cervejaria Loureiro, comi lulas grelhadas, cujo molho verde me acordou para sempre o vivo palato e a língua gustativa.
Eu passeio, eu passo. Passeio e passo na recolecção de olhos. Verdes. Azuis. Castanhos. Negros. Cinzentos. E brancos. Um dia, brancos.
Há olhos brancos em Viseu, não sei se neles reparastes vós já. Passam como nós as alheias pessoas que passam. Vindas vidas, avenidas vindas, passadas e passeadas. O trabalho de toda a pessoa é ver e é viver.
Desta página vos olho – e viseense é já, também ele, o eu do meu olhar. Vou pela Formosa, corto à Direita, sei da Serpa Pinto, nunca me engano na António José de Almeida, sei onde é a Escura (olha-me se não soubesse…), tenho tempo até à Homem Ribeiro.
Ando a pé em Viseu como desde sempre na minha vida.
Passeio e passo, conheço, reconheço e não esqueço.
Viseu aqui é.
Aqui fica.
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3. Contra os Canhões - 7
CRÓNICA (DE)VIDA

A vida, às vezes, é quase tão bela quanto estar vivo. O paradoxo é apenas aparente: vida e viver não são sinónimos, até porque substantivos e verbos raramente coincidem.
Vem esta filosofice toda a (des)propósito de eu estar vivendo uma bela manhã. Como sempre, levantei-me muito cedo. A gata rondou-me os pés nus a caminho da banheira. Fiz-lhe uma festa em retorno da que ela me fazia, dei-lhe água e de comer. Ela agradeceu-me com aqueles olhos fendidos na vertical dos gatos, quais esmeraldas domésticas. Tomei banho, saí. Era tão cedo, que nem Deus havia nascido. No café, café tomei e escrevi uma coisa em treze estrofes rematadas por um versículo final que propõe às pessoas em geral a insensata beleza da troca de rosas. De modo que fui feliz por quase uma hora.
Depois, a Paula Sofia telefonou-me, disse-me que a Sílvia estava à espera da crónica para o jornal, ai como se chama o jornal, Região, acho, Região de Leiria, é isso. Estou sentado no promontório da minha vida a escrevê-la, se calhar é esta, esta crónica, esta crónica vida minha, vossa.
Acho sempre muita graça ao que as palavras fazem da vida. Muito mais graça acho, e perco, quando a vida, como esta manhã me sucedeu, me troca as voltas por rosas. Provas? Imaginai-me aqui há recentes dias: no correio electrónico, uma saudação do Tó-Zé Laranjeira; um abraço aniversariante (a 8) do Carlos S. Almeida; um códice discreto da A.; uma flor retórica da Patrícia Duarte; um telefonema também discreto-secreto do Francisco Santos, por isso não posso dizer o nome dele; e a notícia de que a nascitura (vestígio último do latino particípio futuro) Maria Leonor vai, nascendo, instituir o Verão.
Sim, é a vida, às vezes.
Eu posso fazer isto. Eu sou capaz de fazer isto. Eu sou só capaz de fazer isto: estar vivo dá muito trabalho, sobre tudo por causa da vida. Ai como é que se chama o.

13/05/2008

SINAIS DE VOZ e AFINS MARIQUICES





(Que a outras pessoas dirá a voz que a nós
nos diz tão humanos sermos imprestavelmente?
Dirá a outros que a vida é excessiva
como nos diz a nós tal voz de gente?

Viseu, Café O Bárbaro (tarde de 11 de Maio de 2008, I a IV),
Restaurante Colmeia (noite de 11, V),
Café Avenida ( tarde de 12, VI),
Café Paris (id., VII a XII)
e
Café Mundial (manhã de 13, XIII, em 13 estrofes e um versículo final).
A imagem é de 13 de Abril de 2008, na mesma cidade.



I

Chegam-me sinais
(não serão os primeiros que recebo
mas os primeiros que percebo)
parecidos com os das chegadas & partidas
de toda a gare
em que partir é mais que chegar.
Não é o fim
pois que enfim
enquanto percebo não pereço.
Pareço apenas um gajo mais que prepara a partida
ao sinal de sinais chegados da própria vida.

A que horas é que desconheço.
Dirão talvez depois que parti
às oito da manhã. A essa hora nasci.
Mas enquanto percebo não pereço.

Também por mera técnica de fado
versejo em sinal de um dia ter chegado.

II

A tristeza é uma ferramenta operatória importante
para o usufruto da arquitectura in-gente:
a dos cafés de domingo anoitecendo a nascente
do ente que é doente de poente adiante.

Tenho mãos que emolduram chávenas frias.
Aos meus olhos pertenço que falam.
Gostaria de ter comércios, sei lá, ganadarias
em feiras ganadeiras que se não ralam,

sei lá, com versos e afins mariquices
da trist’operatória fauna versilibrista.
Eu sempre quis, triste, ser artista:
e fui e sou – mas sem americanices,

modos que estou lixado, não vou lá assim
sem coimbrices. Jeito dava era cagar códigos dàvinxes
e lapaus coelhos merdum-merdim.
A mim não m’importa, burro, que relinches

mas importa a operatória ferramenta triste
que diz a um artista que o artista existe.

III

Conheço todas as casas desta aldeia.
Nada me importa que haja aeroportos entre elas.
Aqui como além marulha o regadio o rico cristal
que à mais pobre couve volve diamantina.
Aqui como além tuteia o padre o cantoneiro
que muito difere ter Deus de não ter dinheiro.

Conheço todas as asas desta aldeia.
De barro a andorinha negra segura a branca entrada
da lusa casa que asa a asa voa pessoa
a pessoa. Conheço até como reconheço:
pois nada sei como antes de nascer.
Sei só que custa morrer

em dor aos que ficam p’ra viver
na aldeia. O problema está na ald’ideia.
Levaram-nos à nascença à imobiliária
a qual fiduciária nos garantiu eterna vida.
E pior que isso felicidade
que viver na aldeia era melhor que na cidade.

IV

Sem a ajuda da noite enegrece o olhar o mundo.
Sem a ajuda da noite enegrece o mundo o olhar.
Olhar pode ser ajudar o ser mais fundo
a mais, olhando mundo, mais se fundar.

V

(Voltou-me o mesmo domingo nocturno,
esta noite de domingo, como sempre aqui,
esteja onde estiver sendo.)

Dobra o bronze o silêncio dos campos percutidos.
Camponeses não há já, embora campos
’ind’ aja e hoje pirilampos
luzicuando infantes j’há muito idos.

Também já ninguém quer mor desconforto
que arrumos terem forma de garagens.
Pipocas-dvd, ipod-mãe-arruma-m’as-imagens,
qu’ isto da vida dermóide ’inda dá pró torto.

Eu sei saudades que tenho e cheiro a feno.
Passavam animais, er’eu pequeno.
A vid’enfim já foi, outra virá.
Não é nem pode ser esta que há.

VI

É um horrendo destino, o dos demandadores da beleza.
Na fala de um homem ela pode morar,
a beleza geralmente encontrada na boca de uma mulher.
Os da demanda da beleza vivem o horror de encontrá-la.
A beleza pode ser uma coisa horrível – e é-o
sempre que pode.
A caca de pássaros pode ser, caindo, bela
como um anjo caído – depende da árvore e do vento nela.
Eu acho isto muito.
Eu pratico esta crença muito.
Eu pratic’acho o meu horrendo destino belíssimo.
Vós também, que o sei muito bem.

VII

Já reparaste, amor, em quão católicas são as mãos dos mortos?
Mesmo as do que, vivendo, creram nunca em Deus?
Repara, amor, na sobreposta cera delas sobre o ininterrupto ventre,
que fátuos borborigmos segue marulhando.

Que tão tristes somos, amor, mortos – quão vivos fomos.

VIII

Isto é tudo fisiologia:
ele há o destino grosso,
ele há o destino delgado.

IX

Eça de Queiroz sozinho na Suíça para morrer
enganando Ramalho Ortigão
como Sherlock Holmes ao pobre Dr. Watson
perante a mor moriarty morte.

X

Não.
Não como Holmes retornaremos em fascículos.

XI

Dilema do poeta:

que a outras pessoas dirá a vós?

XII

Vejo o futebol sou feliz por noventa minutos mais descontos
eu desconto tudo eu conto tudo eu não conto eu conto
que sempre haja futebol que aja por mim o que não ajo
na vida fora de um papel fora deste lápis
tenho uma noção exacta e bonita da coisa escrita
desde que não seja a vida tenho uma noção de.

XIII

Às vezes a vida é uma doença mortal
de que convalesço à sombra pluvial
das ramalhosas árvores subidas a pássaros
em frente ao restaurante onde com a minha senhora
pasto a sopa o pão o vinho o café.

A vida chega-me em telefonemas tardios
de amigos meus em suas vidas à minha
idênticas em tudo a começar pela
vital mortalidade da mortal idade
deles e minha e vossa também que isto
ledes em o letes cursor das vidas.

Às vezes penso em ti um dos tus
que eus são ao meu idênticos
que tu como todos nós és voz
de olhos verdes azuis castanhos negros
cinzentos e finalmente brancos
pois que também neva a nave do olhar.

Manhã muito cedo saio de casa
a cidade recebe-te caminhamos
para vós pelas ruas húmidas de sol
gostais como tu como eu do pequeno comércio
que à vida retalha por grosso.

A minha mulher e a tua trocam
rápidas rosas falam do verão
que aí vem e que elas são
amamos tu e eu delas a solidária solidão
da beleza delas mais que a das demais.

Idêntico a ti passeio e passo como vós
pelas idas e vindas avenidas das vidas
recolho as cores dos alheios olhos
tal que menos a pretibranco viva
eu como tu e como voz.

Vês pelo meu olhar as mãos dos pobres
estendidas à caridade da astrologia
esmolando estrelas e pão de pombas
aos velozes outros que como nós
passam passeiam param e anseiam.

Na minha boca escaldas o teu café
com a tua mão aponto a direcção do vento
esse imenso pássaro transparente
que toda a árvore habita de repente
e desde sempre sempre deste olhar.

Eu é que não podia deixar de vos amar
certo da vossa vida seguro da nossa morte
um dia há-de ser noite todos os dias
como todos nós também ainda e sempre
que renascermos mortalmente ao sol.

E logo isto digo hoje que chove
tarda a primavera futura em ser
o maio que antigamente mais foi
do que agora na nossa vida
postais como tu como eu do pequeno comércio.

Junto ao pavia recebo o mondego
o letes súmulo mortal e fluvial
e de vida afinal tão vital que até
parecem maravilhosas as águas de portugal
país de uma doçura crivada de sal.

Às vezes adolesço não já adoeço
da mole moléstia de vivo estar e ser
em frente ao restaurante com a minha senhora
nas mãos vendo-te olhar por ela
o subir dos pássaros as árvores ramalhosas.

Poderemos então trocar de rosas.

11/05/2008

DÁ MUITO TRABALHO TER DIAS

Nos dias se não repetem os dias,
que um único mesmo todos são,
por mais que corram, como correm, a fio,
dias e águas e trabalhos em um mesmo só rio.

Conforme o dia nos paramenta a tristeza ou a alegria.

Viseu, Café Avenida, manhã de 9 de Maio de 2008



TÁBUA

I. ÁLEA DE PEREIRAS-DE-INVERNO
Viseu, Café Paris, tarde de 5 de Maio de 2008

II. ESTA NOITE DORMI NA FLORESTA
Viseu, casa e Café Avenida, manhã de domingo, 4 de Maio de 2008

III. (ESCRE)VER ISTO UMA VEZ
Viseu, Café Avenida, tarde de 2 de Maio de 2008

IV. LERDA CARCAÇA DE FRIGORÍFICO
Viseu, esplanada do Restaurante Colmeia, tarde de 4 de Maio de 2008

V. UM HOMEM ME SAUDOU DE CAMISOLA VERDE
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 7 de Maio de 2008

VI. AGORA COMO SEMPRE
Viseu, Café O Bárbaro, tarde de 10 de Maio de 2008

VII. UM DIA, DUAS
Viseu, Café Mundial, noite de 26 de Abril de 2008

VIII. ALGUMAS CORES
Viseu, Café Paris, tarde de 5 de Maio de 2008


******

I. ÁLEA DE PEREIRAS-DE-INVERNO
Viseu, Café Paris, tarde de 5 de Maio de 2008

I

Tenho o coração cheio de coisas boas e de ruins coisas.
Uma das boas é certa quinta de moagem.
Entrava-se por uma álea de pereiras-de-inverno.
Homens e animais corriam-lhes as sombras
filmadas de sol folheado a farrapos de seda.
Sou hoje uma besta trágica, mas ali fui uma criança feliz
– e, como todas, rápida.
Disseram-me há meses que uns cabrões quaisquer
de uma putinstituição qualquer vão abrasar aquilo tudo.
Mas daquilo não podem os inumeráveis pulhas do numerário
destruir-me a memória viva e vivida e vivente.
A seguir à casa do caseiro, o pátio onde dormia a cadela Lira,
que líquida nos mirava como gente,
a adega à esquerda, os fornos da broa em frente,
a moagem sob a casa do caseiro.
O jardim de duras, elásticas sebes
qu’inda hoje comparo aos ossos das mulheres.
Além-jardim, a casa senhorial, que percorri
como tantos anos depois os sanatórios desertos
do Caramulo. Encontrei lá uma poupa morta.
Tinha ela entrado por quebrado vidro que não reencontrou,
como o não reencontrarei eu, um dia.
Morreu de fome, ela, não ainda eu.
Eu era um menino aprendendo a não ser feliz para sempre:
tive esse cadáver belíssimo nas mãos, devolvi-o
à terra no jardim, perto da água do poço
sublimado pela torre férrea do catavento,
cuja rosa cardial me ensinou que em todas as direcções
me perderia,

como perdi.

II

Os olhos tristes deste homem entristecem até
a alegria gratuita do sol.
Não me parece homem que chore.
Parece-me um homem descuidado de fincar no chão
os pés de homem que no escuro útero esquecido
da mãe calçou.
É de uma formosa fealdade, o rosto
pergaminhado de sonhos lavrados.
Molharam-me, os olhos deste homem triste
que pelas ruas balbucia palavras para ninguém
como certas pessoas que lêem com a boca o jornal.
Estava eu de volta às pereiras-de-inverno
quando o vi olhar-me sem me ver,
como a ninguém vê do alto rastejante, baixo cume,
de sua aguada tristez’azul.
Foi num contente café aonde venho, eu também,
para ser suavemente infeliz,
estabelecimento que dá pelo nome de Café Paris.
Aqui afio incontavelmente os meus lápis
comprados nos chineses a um euro/dez unidades,
aqui leio e releio o Ruy Belo, meu mais sobrevivo
morto-vivo dos poetas, aqui bebo a minha mini espirituosa,
aqui recupero da infância mais dela quão mais dela
me faz o tempo distância.
E aqui sei sozinho que não é com a vida
que a felicidade tem conta-corrente,
mas com a língua portuguesa.
Já vi este homem triste pelas ruas que o sol cartografa.
Hoje vo-lo deixo escrito.
Hoje vo-lo agonizo, aflito.

É de olho azul,
como todo o mar de todo o sul
que nem ele
nem nós navegamos já mais.

(Que sonhos viverá este ex-bebé de alguém?
Que idade tem?
Que idade a tem a tristeza azul?)

Enfarpelado de calça com mais dobra que barriga de parida,
calçado de sapato coxo, um pé, de coxa chinela o outro,
camisa tatuada de suor frio,
o cabelo ondulando como planta de rio,
a breve boca abreviada pelo breviário deletério,
o pobre porte nobre e sério,
a corda de embrulho em vez de cinto
e uma aguda garganta de caroço de maçã
onde Adão peca ainda o broche feito à serpente.

Estarrecem-me
(estrelam-me)
as mãos dele:
a elas, não a tristeza domina, antes se submete,
vencidas pela botânica invencível das cinco pontas,
as unhas miraculosamente limpas como
escamas de peixe
ou
rostos de cavalos.

Ele já aqui não está nem é, mas eu o sou,
por isso naturalmente o vejo e, gente, vo-lo dou.

É um desses cristos pobres que em vão nos ecumenizam as ruas,
os cafés, o nosso exílio das nossas infâncias.
Quanta beleza indefesa, a da miséria!
Quão mísera, a beleza!

Gostaria de poder contratá-lo para, assim vestido,
assim azul e triste assim, apresentar uma noite de gala,
cuja gala fosse ele, ele a dá-la.
Uma gala de uma putinstituição qualquer
de uns inumeráveis numerários cabrões quaisquer,
num inverno de álea de pereiras
azuis.

III

Nenhum amor é tanto quanto outro amor
não comparado a outro qualquer amor.
Aquele homem, que ao telemóvel comenta
o desumanizante disparo do preço mundial do arroz,
ama decerto tão dele as filhas quão eu as minhas,
nem eu sei dizer se ele as tem, teve ou vai ter.
E eu? Eu as tive? Tê-las-ei tido eu?
Deixámo-nos entregar ao amor e aos filhos-da-puta
do preço do arroz, do preço do amor.
E, mais do que o arroz, atroz é não sobrar,
dos campos-de-água onde fomos as filhas plantar,
qualquer amor, nem número qualquer,
de mulher, a quem ligar.

IV

(Os ombros servem de cabide ao tempo,
esse casaco de corvos.
Estiola o panasco no musgoso monte,
fossiliza em pedra-de-Ançã a lenta lesma.
Cada coração s’eleva a geodésico baixo cume
na nem já sequer sentimental topografia.)

Estiola o cabelo na musgosa cabeça,
cujas fontes temporãs não refrescam já manhãs.
E da pulsante barriga os imos
marulham leveduras, borborigmos.

Sintamos o gás das ruas p’ra sempr’oitocentistas.
Dos tísicos, a rosa de sangue ambulatória.
Decape-se a cada campa o tempo e a história.
Descelebre-se do conquistador as desconquistas.

Farfalham os plátanos pálida imitação de oliveiras.
Negreja a igreja, caia-se o corvo.
Nada é tão velho que não tenha sido novo.
Acidulam os limoeiros imitações de laranjeiras.

Hoje há petingas, gélidos jarros de branco vinho.
Os ombros servem de cabide ao tempo.
Vou já atender-vos, peço um momento,
que só ’stou ’qui eu – e estou sozinho.

V

Hei-de de novo ser novo por um momento
atirar pedras longe ao perto das oliveiras
que os mortos da minha vida varejam ’inda
açular os cães à doçura do sono da sesta
e, silvestre santo, dormir em secreta floresta.

Das mamárias glândulas odres de boas
só meus olhos a sós darão notícia
por essas coimbras viseus lisboas
já sem dulcificada delícia.

Hei-de pagar e receber cada minuto da minha vida
que menos é do que língua:
que, como vós, eu sou voz, e distingo-a
da voz de vós, nem sempre havid’ouvida.

Voltarei a ser novo novamente: tenho só de morrer.
Também tenho clarões de versos diversos
e pleno o coração de ruins coisas e de coisas boas.
E de coimbras e de viseus e de lisboas.

VI

A beldade da minha vida é ter da tristeza a beleza.
É achar bonita a arqueocartografia de cada dia.
Também é a mulher (a minha, a vossa) que à chuva aumenta o que chove.
É o resto zero menos nada e fora nove. Ou novo.

É ainda a rapariga que nos entardece de amor
até a genitália não genial entre portugal e a itália.
No fundo é a língua.
À flor é a língua.

Tenho uma vida tão bonita como flores não arranjadas.
Se não fora por coisas, diri’até não manuseadas.
Olhai comigo o esplendor tristíssimo das lojas que acabam:
como eu ficam de escritos à janela.
Comigo olhai as dinastias de sapateiros ourives louceiros
do nosso portugalito de hipermerceeiros
e do prof-açor salazarilhafre.

A vitalidade da minha beleza é ter chamado
Putas!
às putas
mesmo que fossem homens na televisão.

Mas enfim
isto de poetas
é sermos poetas todos
mas nem todos
sido termos
de facto
novos.

VII

Que quantas como estão escritas tantas coisas
no rosto do homem pobre de olhos azuis?
Estou parado como a Sé no sítio da cidade.
As pessoas domingam-me de borla
suas segundas-feiras.
Agradeço-nos sempre profunda comovida
mente
sempre.

Minta meu senhor minta.
Fale-me a seguir de sua Mãe
de como ela o deu
ao azul’omem de trist’olhos.

VIII

Esse estranho sentimento da honra
hora a hora
honra a honra
que a si mesmo e a si mesma se vilipendia
se o sol se fez crisol do que chovia.

No oitavo ano
a minha Mãe tinha sempre
azeitonas e uma pastilha efervescente de vitamina C
para o menino
quando o menino
lhe voltava da escola
à vida.
Seriam trinta e três minutos depois da uma da tarde.
O menino aprendia
a crisolar em sol a água que havia.

Um dia destes perco a minha Mãe
e mais nenhum ano me será oitavo
mas derradeiro e primeiro sempre.

IX

A gente explora a praia fresca dos lençóis ao fundo da cama.
Quem o fez nunca, sozinho no verão sozinho do sono?
Um dia, faz-se outono – e é o mundo:
e frios ficam os pés no fundo do outono.

A gente faz café em casa p’ra toda a gente.
Toda a gente somos dois, um mais ninguém.
Tentamos fazer café como no-lo fazia a mãe
que temos mas não temos, como tod’a gente.

A gente ama-se lentamente com a pressa da vida.
Temos cacarecos de cozinha, que dependuramos.
A gente somos assim, a gente s’amamos.
São, amor, peras-de-inverno: álea, avenida, são a vida.

******

II. ESTA NOITE DORMI NA FLORESTA
Viseu, casa e Café Avenida, manhã de domingo, 4 de Maio de 2008

I

Esta noite dormi na floresta como um santo silvestre.
Rumor de água de invisível rio correu-me as veias num tropel cristalino.
Os pássaros tocavam, altos, seus pífaros de vidro.
Na floresta os mortos podem usar seus nomes vivos.
O adormecido é o mais fiel dos crentes: eu cri.

Estou desperto na cidade, não preciso de usar o nome.
Há um carnaval de gravatas qualquer na praça do município.
Tenho livros em casa que esperam.
Mulheres jovens antiguecem de filhos pela mão.
Não há desejo nem loucura, apenas resignação e persignação.

Entre mim e aquela árvore, está a vida.
Há prédios em torno, mas não contam.
Placas apontam o dedo a nomes de cidades improváveis.
Improváveis como a minha vida, que nelas vive
menos do que estive.
A rotunda roda como um carrossel de miniaturas adultas automobilizadas.
Uma massa de nuvens betuma o vidro da manhã.

Tão mais as mitologias individuais são comezinhas,
tanta mais é sua verdade humana, creio.
E muito tenho eu crido sempre que adormecido.
Creio na água, nas canecas de faiança, nas andorinhas
de barro crucificadas em pleno voo de cal portuguesa.

Agora me ergo, agora abandono
da morte a ténue imitação,
o sono.

Onde estiver a vida, terei ante mim uma árvore.
Não me cegará nem chegará a cidade,
ela sim não ténue imitação
da floresta
com mar detrás
e um rio través.

Nem silvestre nem santo sou.
Nem tu és.

II


É uma casa há muito desertada.
Há um jardim trancado a ferro de portão.
Há muito secou a flor da água do bebedouro,
que um cego anjo de pedra guarda para nada.

Faço de anjo.

Na devastidão do tempo,
casa, jardim, fonte e portão existem
para além dos ex-viventes hoje jacentes
em outro jardim, por outros anjos guardados.

Só mesma é a pedra, lá onde eles.

III

Algumas vidas tornam-se sucessivos ontens
inconsequentes todos os dias.
Será porque a felicidade partilha com a infância
a essência pretérita, não sei.

Sei que aos domingos (o mesmo único domingo
de todos os domingos) isso se me evidencia
com uma clareza que roça a claridade do dia.

Ontem ou hoje, morra o poema, viva a poesia.

IV

Já a manhã entardeceu para ser almoço.
Sabe bem procurar uma sombra, uma cerveja fria.
Uma aragem assobia refrigerante
ante a tarde que vem e tem a noite por diante.

Sabe bem por vezes a vida, desde que, a um canto,
um canto se lhe torne possível e audível.
Das bocas das crianças bolas de goma imitam
as de sabão de antanhantigamente.

Para se ser feliz, só é preciso não se ser gente.

V

Tenho olhos para ler
tenho olhos para ver.

Não os usei,
’inda não,
para viver.

VI

Contem que ontem contém
tudo o que amanhã tem.

******

III. (ESCRE)VER ISTO UMA VEZ
Viseu, Café Avenida, tarde de 2 de Maio de 2008

I

Toma atenção
só vou escrever isto uma vez:

a palavra Mar
inclui a pintura a água da solidão do nascimento.

Também inclui o reverso exacto disso
mas podes sempre ser optimista
podes sempre fingir que não vês.

As crianças nascem sós
e dizem
vamos ao mar.

Chegam lá
deparam-se com a evidência exacta do reverso
põem-se a a coleccionar conchas e casamentos
muito distraídas
como se fosse nada com elas

e deveras

todo o nada é com elas.

Toma atenção.

II

Suave me traz o vento a mão transparente
(aparente mão de gente)
à face.

Dulcíssima carícia desumana.

De irmã mão ou mãe parece provinda.

É uma desumaníssima doce mão linda.

III

Nesta rua uma mulher velha costuma bater em outra mulher velha.
Filha e mãe.
A mais velha bebe.
A mais nova também.

IV

A solidão do nascimento passeia pelas praias
como envelhecida rapariga não casada.
Costumo ir à praia quando fecho os olhos na cama.
Quando enterro na cama o olhar
costumo nascer
ao pé do mar.

V

Sempre trouxe as minhas florestas para dentro dos cafés.
Já paguei bebidas a milhares de faunos.
Os pássaros das minhas florestas enchem-me os cafés
de caca de versos.
Gnomos e elfos, reformados de boné, mulheres
de cordões de varizes atados às tíbias:
tudo é florestal nos meus cafés.

E tu?
Diz-me que florestas trazes.
Não me digas quem és.

VI

Vim dos lados da vida
e ainda não encontrei a saída.

******

IV. LERDA CARCAÇA DE FRIGORÍFICO
Viseu, esplanada do Restaurante Colmeia, tarde de 4 de Maio de 2008

I

Não deterás o tempo
mas deter-te-ás a tempo.
Tens tempo, não o deténs.
Assim é, foi, será.
Mas também ninguém
te deterá nem
terá.

II

Pôs-se a frondosa tarde, ovo de si mesma, clara.
É doce a brisa, um pouco fria, mas doce.
Perante a pedra pode antecipar-se o sono.
Perante o sono, pode dominicar-se a calma.

Gente há que navega o azul mais coralino.
Os peixes verdes transitam, luzes rápidas, fundas.
Essas vidas navegam a memória antes da memória.
São actuais, persistem, são senhoras do ir.

São senhoras do não-retorno.
Pôs-se doce a tarde , temos tempo.
Não navegaremos mas gare e neve
nos não deterão.

Há a questão da Língua.
O involuntário burguês a Ela sujeito
pode e até deve circumnavegar esse marulho dentro.
Dominique-se ele, desde que, claro, frondosamente.

III

Aos nossos mais fiéis fantasmas
mais fiéis somos.
Trata-se de uma lealdade só corruptível
por acção de degenerescência das sinapses.
O que mais fundo plantado foi,
mais alto cresce,
de mais alto cai.

IV

Um porto sei que existe desertado.
De abandonados barcos cresce na sangria poente.
Toleram as águas, ’inda, porto e barcos.
O conjunto mui parece o antigamente.

Inócuos óleos iridescem ’inda a flor da tona.
Tainhas boquinham tainhinhas nutrientes:
a canibal memória sobe às gentes
que invisíveis tornam desertos portos.

V

Não espero nem o autocarro nem a vida.
Se me sento na avenida,
é precisamente porque não espero.

VI

Espero o que não revirá nem reverei:
a tarde centrada pelo pessegueiro
junto ao tanque dos patos.

Atiravam electrodomésticos para trás do muro,
onde a frondosa, como esta tarde, silveira
acolhia a mais lerda carcaça de frigorífico
e a mais desdentada torradeira.

Espero não ter de esperar o que não vai chegar
– nem bastar, mesmo se chegar.

VII

Gosto da pequena eternidade das rosas.
Gosto de por ela ser desprezado.
Tenho eterno tempo p’ra coisas maravilhosas.
Mas não detenho o tempo ao mur’ atirado.

VIII

Quand’onde foi que se estragou
uma alegria que nem minha era,
pois que nas crianças sempre entrou
p’la razão imediata da primavera?

Ond’adulto me adulterei e porquê?
Quem não lê/não sabe/não vê.
Quando perdi porquê quem ond’era?
É hoje mai’outono, inverno é e era.

IX

Passou o tempo das botijas de gás
que os pais compravam contra o frio e a fome.
Uma mercearia havia ao cabo da rua.
Tinham botijas de gás.
Era pesado comprá-las, trazê-las.
Era lixado ser gaibéu em casa própria.
É lixado fazer um poema-redol cheio de pisca-olhos
à portuguesidade, aliás reles, dos nossos dias.

Mas havia gás em todas as mercearias.

X

Ito, ito, ando um bocadito cansadito de versos.
A porra da poesia é ter algo a dizer sobre nada
a ninguém.
Sobram, naturalmente, o Pai e a Mãe.
Mais esses, quatro datas.

XI

Undécima sílaba um pássaro, num sopro,
usou p’ra me dizer que se faz tarde.
Cinzelo o verso, sei, d’uso de escopro,
que martela em vão sílaba verde.

É numa esplanada. A transluz,
ardendo de veia verde vegetal,
permite que ainda em Portugal
se ouça passaritos de som & luz.

É o mesmo domingo.
Ouve pássaros na esplanada para nada.

XII

O tempo das casas é diferente do das pessoas.
Eu não compreendo isso.
Eu acho que as pessoas são as casas.
As casas não acham isso.
As casas deixam de ter pessoas e continuam
a ser pessoas – e até casas.
As casas sem pessoas insistem no ser as
pessoas que foram.
Eu não compreendo as pessoas mas eu
compreendo as casas.
Ainda hoje fiz de anjo fora de uma casa.

XIII

Há de facto, excepto viver, tanto que nos pode acontecer.
A ontem ser.
A em não ser.
A não me ser.

Viva a Língua Portuguesa!
Viva viva viva!

E não morra.

XIV

A questão da Segurança Social ’inda não foi
bem explicada pelos jornais.
Eu trabalhei alguns anos em jornais
– e portanto sei que a questão, por exemplo,
da Segurança Social não é para
explicar.

Quem é social, não pode segurar-se.
O mais que pode, é publicar-se.

A questão não é os que estão.
É quem é.

Portanto, a questão é.

XV

As rosas também nascem nuas
e ninguém mal delas diz.

******

V. UM HOMEM ME SAUDOU DE CAMISOLA VERDE
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 7 de Maio de 2008

I

Vivemos os nossos mortos com a unção extrema devida.
Não andamos aqui para enganar ninguém.
A chuva melhora-nos o amor.
Ind’ora mesmo um homem me saudou de camisola verde.
Uma delicadeza de pássaro usou para me dar a boa-tarde.
Deu-me a boa-tarde (mas chove) de dentro da sua loucura.
É um louco de rua. Conheço-o menos pela camisola verde
que pelo extravio de ave barbada esgravatando o lixo
e o meu coração.
Vivemos os nossos vivos
etc.

II

Somos a delicada nocturna traça de poeirenta asa
ferida de argentino pó de estrelas.
Somos tão-só tão pouca gente nós adentro.
O que nos dizemos, vendo chover, chove também.
E nos parques de estacionamento cheira a guardado frio
férreo – como nossos corações,
nossas camisolas outrora verdes.

III

Há um favor no respirar que nos esquecemos de saudar
cada instantexpirinspira.
Este favor de estar vivo perante a morte
perante os mortos
os amados mortos da nossa vida
que nos transinspiram
cada instante.
Tão pouco nada nunca sabemos do que ser
seremos.
Talvez amados mortos quando nós.

Falta-me-nos o ar.

IV

Recado no-vo-lo dou agora da madura senhora
que da viola curva as mesmas ânforas ancas à cintura:
casaquinho verde apessoado lhe cinge busto e costas,
a ampla nalgação firme e quase breve sob ganga.
Rica senhora.
Mora numa pensão aqui perto.
Vejo-a muito passar, muita para mim, uma só.
Deve trabalhar em rendilhada retrosaria
ou assim.
Mas não é senhora para mim.

V

Com a ponta da língua toca, podendo, a própria Língua.

VI

Completo amanhã uma redonda e capicua data de anos.
Sou o terceiro sempre a chegar a esta triste festa.
Antes que eu fora e estivesse, foram e estiveram meus pais.
Faço 44 anos: sou já mais velho
do que os homens grandes de quando
eu era menino.
Estranha coisa, ter sido menino, ter vindo de um amor
fora de nós para que nós
fôramos.

VII

As nossas mulheres são países que se deitam connosco
menos ao mar.
Sob a frígida Lua, as nossas mulheres lunam
seus sóis tão particulares delas, suas ínfimas contas,
suas mercearias nutrientes, seus delas reservados
homens quase nós.
As nossas mulheres exercem a fala sem usar a voz.
Receio por vezes que nem homens precisem de nós.
As nossas mulheres são todas nossa mãe
mas são também
todas as mulheres que na rua passam além de nós.
Nós somos os cigarrilhas-creme, os casacos-dantílope,
os botas-pretas, os porta-chaves-bmw-em-caso-toyota.
Cada um de nós é e faz de idiota.
Nenhuma de nossas mulheres é menos
do que uma fonte luminosa.

Em vão batemos numa rosa.

VIII

Toca dentro de mim minha usança de joalharias.
Tange meus gázeos cortinados de ama masculina.
Eu tenho noites-te, mas te tenho dias.
Geada frecha albas de rosimenina.

Vem um bocadinho aqui dentro à tradição.
Ist’é séc’lo XXI, mas finge um pouco
que tem crestomatia e leixação
de quem límpida te larga – e a mim, rouco.

Voz a quem (nem adentro) mulherismos.
Nem passagens, sequer, ganga-mulher.
Voz de laticoisaparabismos.
Voz que eu nem m’atrevo sequer.

Toca dentro de mim a mais suave
vilegiatura crepúscula-condição.
Que tu se vires gato caçando ave,
conta-me com os versos, que eu sou cão.

IX

Era uma vez um fim de tarde, as pessoas iam.
Iam, não – eram levadas, não no sabiam.
Era o tempo da desformatura, o tempo das laranjeiras
em que dois minutos bastam p’ra vidas inteiras.

Era uma voz tocando sinitos de mil pratas.
Sinitos campamelados em quartos de meninas.
Fora, até a aragem cheirava a ar de tangerinas.
Assim acim’a Lua iluminava latas.

Era uma vez.
Vem uma voz.
Trabalha dentro.
Faz a couve por dentro, chama-lhe rosa,
como o coração te dá por fora,

a verde camisola,
o casaquito verde.

******

VI. AGORA COMO SEMPRE
Viseu, Café O Bárbaro, tarde de 10 de Maio de 2008

Nos múltiplos beirais de pedra os muitos pombos
preparam a noite – engendram-na,
como foram fechados anjos de chumbo.
Por mim, que mercurialmente ambulo, reconstruo
com palavras o que se deixa destruir conforme a natureza,
a começar pela reconstrução.

Todo o sábado o sol foi néon, um vento frio
encolheu quem passava – todos passamos,
a todos nos encolheram eles, vento e néon.
A pé pela cidade, planeio outras viagens a pé
a outros cantos de Portugal, do qual
a principal pedestre viagem é ter aqui nascido para aqui
morrer.

Agora como sempre anoitece como para sempre.
A sopa de quem tem sopa ferve já nos lares de quem
lar tem.
O vento desceu seus índices de produção, o frio não.
Agora os candeeiros postam a imitação do sol,
os derradeiros gatos tintadachinam as vielas,
o comércio mínimo bruxuleia de velas,
duas ou três, não mais,
os derradeiros pobres recolhem aos beirais.

******

VII. UM DIA, DUAS
Viseu, Café Mundial, noite de 26 de Abril de 2008

I

Não todos nós, mas muitos alguns de nós
temos e levamos ao ombro,
geralmente o esquerdo,
um pássaro com cara de iguana.
Nem todos estamos,
às vezes somo-lo apenas,
tristes,
nem todos sabemos porquê.

Pode ser o velho hábito de o ser
nem sempre e nem todos
o hábito de o ser torna-se maneira de ser
facto sobremaneira bem aproveitado
pelo pássaro pela iguana.

Conheço-nos alguns
pulsa-nos o peito nas costas
mania talvez do coração
que olha o passado futuro
a coluna vertebral sobe-nos à garganta
crava-nos na laringe
a vértebra chamada atlas
e a vértebra chamada axe
só nos não crava as outras trinta e uma
porque não é preciso.

Não somos todos assim
nem todos assim estamos.
Alguns morremos
outros também.

II

Sábado à noite num certo café
numa certa cidade de certa província de certo país
sou um incerto homem.

III

Nem tudo dói
longe disso
perto disto.

IV

Um dia não olharei.
As coisas as cidades a montanha o mar seguirão
sendo olhadas.

Nascemos
dizem-nos que o mundo precisa de nós
para ser mundo para ser famoso
quando afinal
nasçamos ou não
o mundo é mais público do que uma mulher
de avenida
uma mulher
por assim dizer
da vida.

Um dia não verei
o pequeno comércio
os lenços da nenhuma sorte grande dos cauteleiros
as mulheres-sinaleiras de luvas brancas
como se tivessem metido as mãos em cal
as revoadas de pombas ao pão que pude
as velhinhas autocarretando queixinhas de saúde
os poetas enrolando cigarros sem filtro
e filtros sem poesia
e poesia sem lume
como a minha
naturalmente
como a que posso.

Um dia não voltarei
nem ao que fui nem ao que sei
desconhecerei o rumo o retorno
serei finalmente um pássaro embranquecido
uma cera parecida com o meu Pai
com o Pai dele com a ala de pais
que deixaram um dia
de olhar
de ver
de voltar
quando deixaram de ser filhos
do pequeno comércio
da afinal tão pequena sorte grande de ser.

V

Pertenço a uma vida que quando posso não é
deste tempo.
A minha última inocência é dar
pão a pombas.
Noutro tempo antigas mentes assim faziam
assim se davam
a outra vida a que pertenceriam
se a pudessem
como eu não posso.

VI

Sou às vezes de uma árvore se ant’ela paro
para ser de alguma coisa, para pertencer,
como se, como uma árvore, ficasse e não fosse
só alguém que passa só, como sou
e passo.

VII

Uma rapariga não muito nova não velha ainda
esclarece o ar em torno mercê da pujança láctea
de sua mamária celulite sua sela de ancas
suas sandálias estremecidas a verniz de unhas.

Fala por cima do colo a garganta suturada
a anéis geodésicos a topográficas curvas de nível
e põe em tudo o que fala o nada que diz
valendo-lhe ser bonito o nariz.

Formosa fêmea a emprenhar por bancários
militantes do partido e do clube locais
do rancho e da banda e dos bombeiros
e de outras súcias que tais.

Foi o que nos deu o 25 de Abril
de 1143 1640 1820 1910 1926 1974.
Não estremece porém ela ao langor das guitarras
nem aos sinos das datas supra em sol.

É de noite, o sol dorme, a lua inerme.
Distraio e traio o olhar pelos projectores
que o município apontou a capelas e fontes
como se nada fosse comigo e não é.

Isto já era o futuro ontem. Não há aves.
Há lances zéfiros mínimos mínimas revoadas
de mínimos lixos pelas calçadas
dizem que terça-feira volta a chover.

VIII

Convoco por cerrada boca as antigas ânimas
que almas deram por dissimilação fonética.
Muito gostaria de rever quem nunca vi
por ter morrido antes do dia em que nasci.

Os meus e os vossos avós essas vozes
encostadas ao canto dos anos como bicicletas
que deixaram de prestar deixaram de servir
deixaram de falar e por isso de se ouvir.

Esta noite gostaria de os mortos viverem
um pouco mais deste lado antes de menos
sermos os que destes os saúdam ’inda
como fora a morte feia e a vida linda.

Como ’inda não enlouqueci
não espero resposta à convocação.
Mas gostaria que esta noite fosse o dia
dos vossos e dos meus Pai e Irmão.

IX

14 de Março de 2008 foi o
Dia da Incontinência Urinária.
Não posso concordar com a data.
Ao tempo que para aqui ando a mijar incontidamente versos,
deveria tal Dia ser a 8 de Maio.
Faço 44 anos.

X

Muito mais do que connosco
seremos parecidos um dia
com a casa que deixamos vazia.

XI

Agora
é tudo o que posso chamar à
hora.

Vê (vem) comigo:
a Capela da dita Senhora dos Remédios
que nada curou de curar ninguém nunca;
a súbita sombra no coração da tarde;
o súbito coração na sombra da noite;
o verso bonito que te comove sem remédio
como a dita Senhora:
a devolução dos cravos
a que procedeu o Fernando Jorge
dia 25 de Abril de 2008 em Vila Verde,
o Pai dele devolvendo.


vem
agora.

Agora
as coisas vêm e vêem.
Ando aqui a mijar versos para quê para quem?
Agora
é o tempo
o que implicamos nascendo
o que só explicando morrendo indo.
Lindo, lindo.

É tudo o que posso chamar.

XII

As baleias copulam procriam na água pois pudera
parem girinos nodosos como veios de madeira
os cantores fumam holofotes como jogadores
de campos pequenos de pequenos cantos.

A matéria dos sonhos é transpiratória
mais do que relevante.
Nos bares salificados a néon
gela o alicate do lavagante.

Bonitas são as noites a perder como meninas.
O gelo azula seus arredores como de costume.
As estátuas parecem vidro muito histórico.
Nunca temos nem dos reis nem de nós a certeza de quem.

Escrevo muitas vezes
Coração
por ser o que falha.
Olha o coração falhou-lhe dizem-nos de repente
de alguém que nunca nos falhou.
Tem-me acontecido. As baleias vão sempre ao funeral.

XIII

As damas maiores do nosso Teatro
tiveram também
por portuguesas
piolhos.
Acompanhou-as a chá de champanhe
o mesmo andrajoso
por português
barão nem bem nem mal nem por aí além
relacionado com o cônsul da Bélgica da Flandres.
Pagou-lhes na decadência
uma taça de branco
um càlicezito de ginja
algum onicófago de Moscavide.

O nosso Teatro
etc.

XIV

Envelhecemos quando nos revirginamos sem querer.
Acontece-me estar parado entre cervejas
como entre comboios entre estações entre horários
entre calendários.
Só rejuvenescemos quando nos devolvemos
às putas sábias que somos que sempre fomos.

Perante o curso do Rio o rio do Curso
nada nos adianta o dia ante nós.
Consabida lição é a perdição. O urso
etnográfico dá coimbrice não tem voz.


Envelhecemos ante o Mondego.
Razões de Estado terão presidido talvez
ao homicídio e ao pré-desassossego
do cru Pedro nu e da nua Inês crua.

Não sei.

Envelheço.
Pretendo envelhecer nobremente.
Não vou a tempo de ver o nome de certo alguém meu
atribuído a uma rua
que, como Inês nua,
mais a tenha merecido.

Muito temos tenho envelhecido.

Que me conste
nem foi
Inês
pela virgindade
que ficou.

Nem nós nem nossa voz.

XV

Caça as tuas lebres porque te ensinaram a matar.
Cuida um pouco da tua horta de hortênsias.
Cuida um pouco da morta, ajuda a pagar
o enterro. E fica p’ra receber as condolências.

Não cuides de teu idioma. Só porém ante doutores
do fisco, da vagina ou de estertores estende
cuidados antioxidantes, que nisto de falar com senhores
mais vale o ser entendido do q’o que se entende.

Esmaga as tuas minhocas, cerca tuas ratas.
Ele há ’inda bicheza em Portugal.
Loucos avençados botam fogo às matas,
mas tudo de que tratas é mui moral.

Caça as tuas perdizes torguianas.
Finc’até esfíncteres eugenianos.
Terás lançamentos todas as semanas
de versimunicípiossucessos anos e anos.

Nunca arrisques nada. Muito menos a Língua.
Encosta a teus ancestros o idioma.
A Viseu, indo-a, indo-a,
é linda a Língua, vê-se-lhe o aroma.

Caça as tuas lebres, não te caces nem coces.
Não t’atires a um poço de ínsua.
Muito te atempes, tudo te espaces:
vem de língua a Viseu, indo-a, vindo-a.

XVI

Nem sempre felizmente mas acontece
chegar-nos dupla gota de água do mar aos olhos
salgada como a tal água compete
às vezes acontece.

Há ocasiões banais quase até comercindustriais
em que até apetece: funerais e coisas assintais.
Outras não é o caso.
Outras é o ocaso:
no pôr, o sangrento laranjal do sol;
no meter, a oriental alba de pastorinhos e orvalhos.
Às vezes choramos como reses
em súbita consciência de matadouro.
Presidem-nos os olhos, o que é mau.
Residem-nos olhos, o que não é bom.
Uma mulher alta pode levar-nos a chorar.
Uma chuvada sem ser por nada também pode.
O valor de uns olhos anónimos não sujeitos a câmbio.
O comércio invencível das nossas mesmas mãos.
O fideputa que nos não dá emprego.
O fideputa que nos tira o emprego.
Os gajos que fedem a cultura de esquerda com tiques de direita.
Os gajos que tocam com a direita punhetas canhotas.
Os gajos que fedem.
Os gajos que fodem porque não podem
amar.
O pão das pombas – o pão das pombas pode fazer chorar.
Não o alegre prant’riste dos palhaços pobres
como o nosso português país.
Digo: o mar é gajo para nos visitar
em dupla pérola
os cabrões
dos olhos,
tão sujeitos
(mais do que nós, objectos, sujeitos)
a prantos
a marinho sal afeitos.
Pode acontecer.

E acontece.
Ainda ontem me.

XVII

Se tiveres filhas
navega-as como a ilhas.
Ilhas são – e boas.
Não por serem filhas
mas pessoas.

Avisa a navegação.
Avisa a navegação.

******

VIII. ALGUMAS CORES
Viseu, Café Paris, tarde de 5 de Maio de 2008

Meu colo é de ondeados rubros trapos coberto.
Açafrão colora-me a hepática unha, que o idioma
desculpa e recolora.
Viver, à vida não melhora.
Tenho, usando o que visto, vestindo o que uso,
um abuso da palavra morte,
mas ela é a mais justa, e mais lavada,
palavra de que me não
escuso.

Uso carmesim orelha
(é do coçar)
e p’ra mim roupa vermelha
nunca foi de não usar.

Tenho é cuecas pretas:
mas quando sonho, sonho com nuas violetas.

08/05/2008

Uma Notícia e Três Crónicas



Alice Campos, autora de belíssima e fortíssima poesia (ver link aqui no Canil), vai publicar o seu primeiro livro em papel. Chama-se “o ciclo menstrual da noite”. O lançamento é no Porto: Casa Museu Abel Salazar, sábado, 10 de Maio de 2008, pelas 16 horas. Quem puder, não perca.

Seguem-se as três crónicas (três, porque passei a colaborar também no viseense Jornal do Centro).

1. Rosário Breve – 51
(O Ribatejo, http://www.oribatejo.pt/)


QUAL É A TUA, HOMEO?


Esta semana, vou falar-vos de homeopatia.
Pior do que a homeopatia, é ficar pa’ tia. Suponho que é o que vai suceder a Manuela Ferreira Leite, se ela tiver o azar de vencer as directas internas da Laranja. Calculem o número de “sobrinhos”, rezingões uns, melífluos outros, bajuladores todos… Não lhe invejo o escrutínio. Nem a ela, nem ao próximo treinador do Benfica. A não ser que o próximo treinador do Benfica seja ela.
Bem, mas estou aqui para falar-vos de homeopatia. A homeopatia é uma ciência brasileira que trata do pulgão da couve com pinças astrológicas derivádófactas do Leblon. Aprendi isto naquele programa do Jorge Gabriel que tem um pianista muito engraçado que nunca me faz rir nem assim este bocadinho. Mas pior do que isto, só se Manuela Ferreira Leite fosse a pianista do Jorge Gabriel. Estou daqui a ver a cena: Manuela ao piano, Santana aos ferrinhos, Rio no bombo, Jardim como bombo e Patinha Antão a explicar sozinho a ninguém o que é a homeopatia.
A homeopatia, diria Patinha, é a ciência que quase consegue explicar como é que Alberto João Jardim, enfim. De uma coisa estou certo: neste preciso ponto, Patinha seria contrariado por qualquer outro dos 282 candidatos à liderança da Laranja, até porque, enfim, mas francamente.
Nisto, entra o Brasil a ensinar-nos que homeopatia se-debia-de escrever sem “h”, “i” em vez do “e” (porque é complicado para as crianças e para eles, brasileiros) e “manuela” em vez de “patia”, o que Manuela agradeceria.
Para a semana, tenciono falar-vos de mialgia. De mialgia ou de ptiríase versicolor, moléstia da pele que debe-de ser atacada com pomada à base de sabão cor-de-laranja com largo espectro de acção fungicida.
Disso ou da vida.



Crónica Mundial – 1
(Jornal do Centro, http://www.jornaldocentro.pt/)


TEMPO, VISEU E MUNDO


Ela era Augusta. Ele foi Augusto. Ela era Cruz. Ele, Hilário. Augusta Cruz. Augusto Hilário. Ela só viveu 32 anos. Ele também só viveu 32. Ela nasceu cinco anos depois dele. Ele morreu cinco anos antes dela. Augusta Cruz: 1869-1901. Augusto Hilário: 1864-1896. Ela cantou. Ele cantou.
Agora ela e ele são duas ruas de Viseu. Perto uma da outra, uma do outro. Atiram à memória futura seus nomes antes passados. Seus nomes magoados pela breve vida e pela duradoura morte. Ambas as ruas de seus nomes deitam esquina à formosa Praça de D. Duarte, no exacto coração histórico da mui formosa, também, cidade de Viseu. Sim, de D. Duarte, que El-Rei foi de gente como nós. D. Duarte, que teve o desaforo de viver mais 15 anos do que Augusta e do que Augusto: 1391-1438. E de quem, que conste, não consta memória de haver cantado.
Escrevo-vos de mundial modo a partir de homónimo bar, perto de Duarte, de Augusta e de Augusto. Vida e destino (que nem sempre são aquilo que dela e dele se diz) me tornaram, conimbricense que era, viseense agora. Vivo aqui. Trabalho a partir de aqui. E Viseu se me tornou o mais recente dos meus amores antigos. Sim. Tornou. Decerto porque de aqui perto era, foi e será o meu professor primário, na mesma Coimbra que o Hilário cantou como mais ninguém. Chamou-se Elias Rodrigues Faro. Dele vos farei crónica em breve.
Entretanto, o tempo é de convidar-vos para um pouco de sol: o mesmo sol que, quando quer, faz da Praça de D. Duarte, aqui junto à Sé, um hino de luz de ouro a essa etérea pedra que dá pelo nome de Tempo. O Tempo que, escrito em minúsculas, é o tempo de Duarte, de Augusta e de Augusto.
Deles e nosso, em Viseu como no resto, no rasto e no rosto do mundo.



Contra os Canhões – 6
(Região de Leiria, http://www.regiaodeleiria.pt/)
DAREM-NOS O ARROZ

A república do mundo volveu-se uma monarquia de idiotas. Isto não é uma opinião: é uma verificação. Assistamos, de longe, ao preço do pão. Do arroz. Do petróleo que incha de direitos humanos (desde que “direitos” e “humanos” rimem com “norte-americanos”). Agora, os tesos que não têm petróleo mas têm arroz – esses decidiram “bushar”, eles também, o mundo. Nada conta que este mundo seja um pobre mundo. Nada conta que este seja um mundo de pobres à força.
Não: esta não é mais uma refutação às teses de Feuerbach; não, se Hitler tivesse ganho a guerra (como Franco ganhou e como Salazar, fraquito de pernas, não teve sequer de disputar), este mundo não seria melhor para as pessoas. Nem para as pessoas nem para os animais.
Este mundo é feito de propósito para cantigas de amigo e para amigos cantores. É ligar a telé: entre acnes madeirenses que triunfam na liga inglesa e gorduras circenses que escabriolam na Madeira, o resto é prós-e-contras de exibição, por assim dizer, madeirense. É o preço do arroz, que em não suaves prestações vamos pagando enquanto não tivermos têvêcabo.
O arroz tornou-se-nos mais precário do que a mirada, de fora, sapateira de aquário marisqueiro. Enquanto não empenharmos as próprias almas, glândulas e retinas a nórdicos ou austro-húngaros violadores de próprias-filhas, não vamos nem iremos lá.
É este o mundo dos palácios de gelo, dos hipernadas, dos macromicros, do TGV e do arroz. É de facto e definitivamente o país (o mundo) dos idiotas: dos que mandam e dos que são mandados. Os que vendem o arroz a preço de gasóleo e os que os nos dão o arroz com moral gasolineira.
É o mundo (o país) a que nos deixámos reduzir. Porque Hitler, porque o Vietcong, porque o 25 de Abril, porque o arroz.
Ao contrário de vós, resguardei pacotes de massa tipo macarrão em casa. Estou safo por duas semanas: a mim, só me dá o arroz quem quer.


Canzoada Assaltante