16/02/2007

Raposa, Leite e Prata - histª 60 do Anoitecer ao Tom Dela




1
Uma raposa que vem matar a sede num remanso da cascata, entre laranjeiras bravas e ferrugentos limoeiros sem dono. O leite que a Lua derrama pela encosta nascente. O fulgor plúmbeo da casa de novo habitada – não por um casal de velhos ou por uma família incolor, mas por um operário metalúrgico aposentado. Dir-vos-ei breves coisas interiores desse homem.

2
Chama-se, tal homem, Silveira. Os nomes próprios foram de imperador: Francisco José. Francisco José Silveira cumpriu quarenta e dois anos de pena de vida como operário metalúrgico da construção naval. Viveu no Barreiro todos os invernos desses anos. É possível que aí tenha formado família regular de mulher e quatro filhos. Aceitou a indemnização colectiva do encerramento do estaleiro, entrou na pré-reforma, despediu-se da mulher, telefonou aos filhos e partiu sem olhar para trás.

3
Quando operário, o serralheiro Silveira tinha convivido com um camarada de modos reservados que não acreditava nem na Igreja nem na Revolução. Esse companheiro de trabalho chama-se Mário Júlio Lobo. Era um montanhês exilado na cintura industrial do Tejo. Lobo trabalhava a par de Silveira, mas era Mário quem falava com Francisco.

4
Mário disse a Júlio que havia uma casa de pedra na encosta nascente da montanha onde nascera. A casa não era de todo isolada. Ficava a uns duzentos metros do cabeço da aldeia. Mas era uma habitação solitária o suficiente para um homem, no fim da vida, pedir à vida desculpa por ter feito dela o que quer que fosse que dela houvesse feito.

5
Francisco herdou de Mário a casa da encosta nascente. O operário Lobo ficou doente, o sindicato acompanhou-o com dignidade, choveu um pouco na tarde do enterro, mas antes do anoitecer, num clarão de granada citrina, o sol fez do crepúsculo uma espécie de pomar.

6
Francisco José Silveira apanhou o barco para o Terreiro do Paço, foi a pé até Santa Apolónia, desceu do comboio no Vimieiro e foi a pé até Tondela, onde passou a noite no café das bombas de gasolina. Manhã cedo, apanhou a carreira para a serra.

7
A casa recebia a chuva por cima e por dois lados. O piso tinha aluído, restando apenas a trave-mestra. O chão era ondulado como uma maré quieta. Francisco poisou o saco e a mala, foi à aldeia tratar com o carpinteiro e voltou para casa.

8
A noite embebedava de vento as laranjeiras bravas. O som da água subia e descia por partitura. A lareira e a chaminé aceitaram de boa vontade um toro de pinho grande e uma pilha de gravetos que pareciam ter estado à espera de Francisco – ou de Mário – desde sempre.

9
As estrelas da noite de Maio preencheram os vãos do telhado nesse primeiro serão. Consultando sem perguntas a perpétua resposta do lume, Francisco José Silveira receou que a felicidade lhe rebentasse o coração a coronhadas. Comeu o pão da aldeia, bebeu vinho e foi buscar duas laranjas à árvore mais próxima da água. Foi então que viu a raposa.

10
A raposa tinha vindo beber água ao regato, aos pés da breve cascata. Mas o efeito da Lua fazia com que parecesse beber leite e prata. Suspenso de delícia pânica, Francisco José não ousou deixar tremer uma pálpebra. A raposa bebia leite e prata – ou então, a vida tinha aceitado os pedidos de desculpa de Francisco José Silveira e de Mário Júlio Lobo.

Texto: Caramulo, tarde de 5 de Fevereiro de 2007
Foto: idem, manhã de 17 de Janeiro de 2007

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